Enlil (Frente Oriental: https://t.me/frenteoriental) – Junho 14 de 2024
Nota do Saker Latinoamérica: Quantum Bird aqui. Leitura obrigatória para quem quer de fato entender o fenômeno AfD para além do maniqueísmo de esquerda e de direita que domina o noticiário sobre este movimento. No fim, o ataque à AfD é mais uma iteração da oposição perene, sistemática e unificada contra qualquer expressão política popular, que muito define a pseudo-democrácia ocidental. Muito do tratamento dispensado à AfD é também aplicado ao partido de Sarah, Bündnis Sahra Wagenknecht, que acaba de receber a alcunha de extrema esquerda. Apenas juntem os pontos: AfD, BSW e outros "extremistas" acabaram de serem acusados de facismo e de quererem destruir a Europa por von der Lyen. Agradecemos a Enlil por essa excelente compilação e pedimos a todos que prestigiem seu excelente canal telegram (Frente Oriental: https://t.me/frenteoriental).
Resultados das eleições para o Parlamento Europeu de 2024 na Alemanha (Fonte: Erinthecute).
Esta semana vimos uma verdadeira “histeria” na mídia mainstream ocidental e na “esquerda” [1] majoritária da periferia do capitalismo no Sul Global (Brasil, por exemplo) após a eleição para o 10º Parlamento Europeu em 9 de junho de 2024 [2] com a ascensão da AfD na Alemanha e outros partidos nacionalistas na Europa; a AfD teve ampla vitória no território da antiga Alemanha Oriental; a mídia mainstream alemã, toda da antiga Alemanha Ocidental, entrou em “surto”; mas porque a AfD foi vitoriosa no leste do país?
A explicação é simples: não houve reunificação alemã alguma mas sim anexação da Alemanha Oriental pela Ocidental; desde então os alemães orientais viraram cidadãos de segunda classe; houve uma exclusão quase total dos que nasceram e cresceram na antiga Alemanha do leste de posições de influência na política, economia e nos meios de comunicação alemães desde 1990; além disso, a crise econômica advinda da política de vassalagem total do governo de Olaf Scholz aos interesses dos EUA afetou bastante a região leste do país; a AfD se opõe ferozmente à política econômica, energética, ambiental, de saúde, migratória e de gênero da UE (controlada pelos EUA); sempre se opôs à Guerra da Ucrânia e às sanções contra a Rússia que estão destruindo a economia alemã; o partido também endossou as acusações de que os EUA estão envolvidos na sabotagem do gasoduto Nord Stream em 2022, pediu investigações, o conserto dos seus dutos e retorno das importações do gás russo barato; também houve reuniões de representantes do AfD com o governo russo (que atesta a campanha difamatória ocidental contra o partido e não avaliza a acusação de sua ligação com neonazismo); ou seja, anátemas absolutos para um status quo que converteu a Alemanha e outros países europeus da OTAN/UE em vassalos incondicionais dos EUA.
O Primeiro-Ministro da Hungria, Viktor Orbán, também é taxado de “populista de extrema direita” e uma “ameaça a democracia europeia”; novamente a questão nunca foi essa para EUA/OTAN/UE mas, sim, sua oposição à Guerra na Ucrânia e sanções contra a Rússia que prejudicariam a economia e os interesses nacionais húngaros; Marine Le Pen e seu partido Rassemblement National (Reunião Nacional) tem sido cada vez mais populares na França pelos mesmos motivos; já o Primeiro-Ministro eslovaco, Robert Fico, outro nacionalista opositor, mas de esquerda, foi baleado numa tentativa de assassinato dia 15 de maio em Handlova, Eslováquia. Governos como o polonês (muito mais extremista em suas posições que o húngaro) ou dos países Bálticos (equivalentes ao da Ucrânia em russofobia e base neonazista) sequer são citados tempo algum pelos “democratas” de Bruxelas; esses mesmos alarmistas apoiam neonazistas no governo/Forças Armadas Ucranianas e operações terroristas destes contra civis russos; os mesmos que apoiaram grupos salafistas/jihadistas/terroristas ligados à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico na Líbia, Iraque e Síria; é óbvio que o ponto não é que esses partidos europeus tenham fundamentos extremistas (algum de direita não tem?) em correntes internas, mas, sim, a oposição que fazem às políticas da UE e à Guerra na Ucrânia; logo, são taxados de “extremistas, populistas, antiamericanos, putinistas”, etc. Orbán, por exemplo, sistematicamente alerta desde 2022 que as práticas da OTAN na guerra de procuração contra a Rússia na Ucrânia podem levar a uma confrontação nuclear. Quem realmente é uma “ameaça para a Europa”?
Como está evidente, essas narrativas são desvio de foco de pontos fundamentais do debate real desses atores: a política da UE, da OTAN e dos EUA na Europa; há uma tentativa desesperada do establishment da antiga Alemanha Ocidental de desqualificar a AfD para interditar qualquer possibilidade de interlocução com o público, sobretudo diante do crescente avanço eleitoral do partido nos Estados da antiga Alemanha Oriental; o partido foi fundado em 2013 por dissidentes nacionalistas do partido conservador cristão CDU que se opunham às políticas da UE (vários saíram da AfD na medida que o partido foi se distanciando da “democracia liberal” de moldes ocidentais); aos poucos foi ganhando penetração no leste do país pela oposição à “colonização” pela antiga Alemanha Ocidental, ao governo transnacional europeu em Bruxelas, sua identificação com valores tradicionais (reativa ao woke-identitarismo [3] dominante no oeste), contra o pseudo ambientalismo dos “verdes”, sentimento pró-russo de muitos alemães orientais numa região ainda influenciada por sua conexão histórica com a República Democrática Alemã e que tem orgulho de sua herança eslava; ou seja, seu tradicionalismo tem fundamentos históricos e civilizacionais que foram sistematicamente sendo tolhidos pela política de Estado dominada pela Alemanha Ocidental desde a anexação da Oriental em 1990. A rotulação da ascensão do partido AfD nos Estados da Saxônia, Saxônia-Anhalt e Turíngia como “extremista de direita comprovada” foi feita pelo Bundesamt für Verfassungsschutz (Escritório Federal para a Proteção da Constituição, “responsável por proteger a ordem básica democrática livre em nível federal e nos 16 Estados federais”) do governo de Olaf Scholz e reverberada pela mídia mainstream que apoia suas políticas; praticamente todas a denúncias públicas do envolvimento da AfD com a “extrema direita” tem origem no Verfassungsschutz que abriu “investigações” e colocou o partido sob vigilância (incluindo escutas telefônicas e agentes infiltrados). A acusação de neonazismo/antissemitismo advenho sobretudo das críticas de um de seus fundadores, Björn Höcke, a “holocaustização” [4] (“termo” e aspas minhas) da política alemã desde o final da Segunda Guerra Mundial e a necessidade de se virar essa página (ao tempo que há correntes no partido que defendem o regime sionista de Israel). O que é curioso é que os “analistas” da mídia mainstream alemã entram em contradição ao admitirem que o partido não é ideologicamente monolítico e apresenta várias correntes, sendo duas proeminentes: uma considerada moderada (direita nacionalista conservadora) e outra “radical”; o que nunca é mencionado é que correntes dentro dessa “linha dura” defendem várias posições que são as mesmas da atual direita dirigente alemã (lembrando que a origem da AfD é uma dissidência do CDU). Ou seja, a AfD é um partido jovem e ainda há um disputa interna de correntes; mas a Verfassungsschutz e mídia mainstream são taxativas como sendo de “extrema direita”.
Historicamente o fascismo/nazismo e suas “novas variantes” nada mais são do que “botões de emergência” das oligarquias ocidentais capitalistas e de suas correlatas na periferia no Sul Global; essas oligarquias e mídia mainstream associada recorrerão às suas variantes contemporâneas quando for do interesse de seu status quo (na América do Sul, o Brasil e Argentina são exemplos bem recentes); a Der Spiegel (que apoia o governo de Olaf Scholz) de 18 de maio de 2024 foi lançada com a capa “75 Jahre Bundesrepublik – Nichts gelernt?” (75 anos da República Federal da Alemanha – Não Aprenderam Nada?):
“Denuncia” que o “extremismo de direita e o ódio aos judeus” não foram “superados” na Alemanha; a mesma Der Spiegel publicou dia 13 de junho outro “alerta” da editora do departamento de política da revista, Ann-Katrin Müller, com o título: “Finalmente, cuidem de vocês mesmos! O sucesso do AfD mostra isso: A democracia está em perigo”. Seriam preocupações “comoventes” se não fossem os fatos que o fascismo/nazismo nada mas é do que a ideologia supremacista e racista da oligarquia europeia há 500 anos; como já citado, a mídia mainstream europeia nunca viu qualquer problema nos atuais governos europeus e a OTAN a apoiarem um regime de base neonazista na Ucrânia; em financiarem, treinarem e armarem várias unidades neonazistas das Forças Armadas Ucranianas na guerra por procuração contra a Rússia (processo que começou anos antes do início da Operação Militar Especial russa em fevereiro de 2022):
Neonazistas do Batalhão Azov com uma bandeira nazista e da OTAN (Ucrânia, ca. 2018; fonte desconhecida).
Além disso o governo da Alemanha tem sido um apoiador incondicional do regime sionista de extrema direita de Israel que comete em série os piores Crimes de Guerra e Contra Humanidade desde século contra a população civil palestina na Faixa de Gaza desde outubro de 2023; qualquer manifestação pró-palestina no país tem sido combatida com truculência e violência pela polícia; críticas a Israel são automaticamente taxadas de “antissemitismo”; se chegou ao ponto do governo da CDU no Estado da Saxônia-Anhalt apresentar decreto que exige reconhecimento por escrito do regime sionista de Israel e compromisso com sua segurança para se obter naturalização alemã [5]; se tenta estender tal medida para outros Estados alemães.
Debulhando um pouco a agenda oficial da AfD, para além das questões já citadas, para dar mais um exemplo, está claro em seu programa que são severamente contra a imigração ilegal, não regulamentada e atual política de imigração da Alemanha/UE; consideram sobretudo o “islã político” uma ameaça para a Alemanha e para a Europa; no entanto, defendem em seu programa uma política de imigração baseada no modelo japonês [6] (segundo eles calcada em qualificação e integração); não vemos nenhuma citação na mídia mainstream ou da “esquerda” majoritária a esse detalhe relevante (a política japonesa como referência), apenas que são “xenófobos”. Lembrando que foi esse mesmo regime político europeu, vassalo dos EUA, a custo de centenas de bilhões de euros, que nos últimos 20 anos destruiu a Líbia, a Síria, ocupou o Afeganistão, fomentou dezenas de conflitos no Sahel e na África Subsaariana, levando dezenas de milhões de pessoas a virarem refugiadas, que são o grosso das ondas de migração ilegal para a própria Europa na última década e meia.
Levando em conta o exposto acima, temos o plano de fundo político e geopolítico que levou inclusive pessoais inclinadas à esquerda (de fato) a votarem num partido de direita mas que defende os interesses e soberania nacional; partido que tem correntes ideológicas em disputa por hegemonia; sendo assim, é falsa a acusação que sobretudo a juventude foi “seduzida” pela “extrema direita” no leste da Alemanha; na verdade todos os partidos taxados de “extrema direita” que tiveram sucesso eleitoral na última eleição não são monolíticos ideologicamente; o eleitorado recorreu a eles diante da opção a partidos tradicionais (incluindo “social-democratas”, “socialistas” e “verdes”) que atualmente compõem o statu quo político, econômico e geopolítico dos Estados da UE que cometem um “seppuku econômico” despendendo centenas de bilhões de euros na Guerra da Ucrânia e impondo sanções contra a Rússia que têm arrasado setores econômicos nacionais inteiros; políticas que favoreceram apenas os interesses dos EUA. Esse é o fato relevante: a necessidade histórica de se recorrer a uma direita nacionalista (mesmo com grandes contradições internas) tendo em vista que a suposta “esquerda” partidária majoritária é, de fato, colaboracionista da oligarquia europeia e do imperialismo estadunidense.
Em vários países do Sul Global temos contextos parecidos; uma falsa esquerda partidária majoritária (que automática e superficialmente identifica nacionalismo com chauvinismo e xenofobia) e que na prática é da ordem oligárquica local e imperialista vigente; ordem com a qual nunca romperam; defendem reformismos efêmeros, uma “conciliação” de classes e de periferia-imperialismo na qual as concessões são de via única, sempre em detrimento da justiça social e soberania nacional. Ou seja, “esquerdas” que sequer são socialistas atualmente; pelo contrário, ignoram e renegam as experiências socialistas históricas que mesmos com seus erros e contradições foram e são absolutamente essenciais nas lutas anticoloniais, de libertação nacional e anti-imperialistas.
No caso do Brasil é realmente impressionante que a militância da “esquerda” partidária majoritária nunca desconfie de nada quando várias de suas principais pautas são exatamente as mesmas da mídia mainstream oligárquica, antinacional e pró-imperialista. Repetem ipsis litteris a mesma narrativa/agenda para inúmeros temas; no “mundo mágico” de sua moral ideológica “puritana” própria e autoproclamada indelével não existe realpolitik em defesa dos interesses e da soberania nacional; no mundo real, onde o enfrentamento sempre possui contradições, essas vitórias eleitorais na Europa favorecem, sim, a luta anti-imperialista do momento (fazendo fissuras no seio da UE/OTAN) e é o que realmente deveria interessar aqui, na periferia do capitalismo no Sul Global. Idem uma luta fratricida no império da hegemonia unilateral (EUA) que acelere ainda mais sua decadência; nenhuma de suas duas facções nos trará qualquer benefício geopolítico.
Por sua vez, a direita brasileira (absolutamente tosca, colonizada, analfabeta política, em história e geopolítica) comemora a vitória dos “conservadores na Europa”; salientam que a votação no antigo espaço da Alemanha Oriental é um “repúdio ao seu passado comunista e ao atual comunismo do oeste do país”; ao tempo que a pauta econômica e geopolítica da AfD e outros partidos europeus que ganharam as eleições é completamente oposta ao que defendem: antineoliberal, contra a hegemonia dos EUA na Europa, contra o regime neonazista de Kiev e pró-russa.
O exposto acima apenas demonstra que em geopolítica sempre há nuances (as vezes imensos) entre o aparente “preto e branco” e a realpolitik que deveria guiar nossa própria luta anti-imperialista e pelo mundo multipolar. No entanto, aqui no Brasil, a esquizofrenia ideológica é quase absoluta: uma “esquerda” majoritária liberal que fez telecatch de oposição desde o Golpe de 2016, ao desmanche das Leis Trabalhistas, Reforma da Previdência, Teto de Gastos, independência do Banco Central, entreguismo, etc. (nada revisto, na política “possível” de quem abandonou completamente princípios socialistas e trabalho de base), mais preocupada em defender um pseudo ativismo ambiental (de ONGs de fachada estrangeiras), woke-identitarismo, proxy do Partido Democrata estadunidense, assombrada com um espantalho de “extrema direita/fascista” da mídia mainstream europeia (que apoia neonazistas reais na Ucrânia e outros países do leste europeu) e uma direita “nacionalista” que defende submissão total aos EUA, ultra-entreguismo e que vê essa eleição europeia como um vitória contra o “comunismo”…
Enlil: Editor do canal público Frente Oriental no Telegram (https://t.me/frenteoriental), dedicado a História, Geopolítica e Defesa, com foco em China, Irã, Rússia e conflitos no Oriente Médio (sobretudo envolvendo as forças do “Eixo da Resistência” do Irã-Iraque-Síria-Líbano e Iêmen), na África e outras regiões da Ásia (sobretudo Central).
…
Notas:
– AfD: Alternative für Deutschland (Alternativa para a Alemanha); programa para as eleições europeias de 2024 (em alemão):
https://www.afd.de/wp-content/uploads/2023/12/AfD_EW_Programm_2024.pdf
– CDU: Christlich Demokratische Union Deutschlands (União Democrata Cristã da Alemanha);
– [1]: Não basta defender Justiça Social (parcial); partidos ou ideologia que não são, de fato, antioligárquicos, anti-imperialistas e nacionalistas não são, em nenhum momento da história, esquerda.
– [2]: “Eleição para o 10º Parlamento Europeu em 9 de junho de 2024.
De 6 a 9 de junho de 2024, os cidadãos da União Europeia elegeram o Parlamento Europeu pela décima vez. Em 10 de agosto de 2023, o Governo Federal definiu o domingo, 9 de junho de 2024, como a data da eleição para as eleições europeias na Alemanha [consulte “Anúncio do dia da eleição para as eleições europeias de 2024”, de 16 de agosto de 2023 (Diário Oficial da União I, p. 213)].
As eleições para o Parlamento Europeu não são realizadas de acordo com a lei eleitoral europeia uniforme, mas de acordo com as leis eleitorais nacionais. A Lei das Eleições Europeias e os Regulamentos Eleitorais Europeus regem o procedimento eleitoral na República Federal da Alemanha.”
https://bundeswahlleiterin.de/europawahlen/2024.html
– [3]: Vide Alguns Pontos Sobre Wokeismo (Quantum Bird, Setembro 11, 2023):
https://sakerlatam.blog/alguns-pontos-sobre-wokeismo
– [4]: Vide FINKELSTEIN, Norman G. A Indústria do Holocausto (Record, 2001):
https://t.me/frenteoriental/6975
https://t.me/frenteoriental/6976
– [5]: Na Alemanha a lei da nacionalidade é da responsabilidade do governo federal, mas a sua implementação é da responsabilidade dos estados.
– [6]: Para consulta sobre esse e outros pontos: https://www.afd.de/europa-neu-denken/
Artigo com boa contextualização sobre a situação político-eleitoral da Europa, já que levanta a lebre sobre a Teoria da Ferradura mal ajambrada pelos analistas mainstreans e seguidos por boa parte de gente que se diz crítica, caindo nessa esparrela ridícula. E a articulação com a conjuntura do Brasil mostra como essa difusão faz muito mal aos formadores de opinião, deve ser um alerta para que análises mais substanciosas sejam feitas sobre a conjuntura política no ocidente.