A Última Cruzada, Parte I

Dmitry Orlov – 20 de dezembro de 2022

 Prestigie a escrita de Dmitry Orlov em:  https://boosty.to/cluborlov

Há uma acentuada divergência de opinião sobre as formas de caracterizar a ação militar atualmente em curso no que resta da ex-República Socialista Soviética Ucraniana: é uma operação militar especial russa para desmilitarizar e desnazificar a ex-Ucrânia, ou é uma invasão russa não provocada levando até à Terceira Guerra Mundial, uma troca nuclear e o fim do mundo como o conhecemos (TEOTWAKI para abreviar)? Talvez seja um pouco de cada; ou talvez não seja nenhuma das opções acima…

E a Rússia está ganhando ou a Ucrânia está perdendo? Por um lado, a Rússia acabou de expandir oficialmente seu território soberano em mil quilômetros quadrados e alguns milhões de cidadãos e lançou uma onda de construção massiva, consertando seus novos territórios, que estão um pouco degradados depois de décadas de regime soviético tardio e negligência pós-soviética seguida de nove anos de bombardeio ucraniano. Isso indicaria que a Rússia está ganhando.

Por outro lado, os EUA apenas prometeram dar aos ucranianos algumas baterias de defesa aérea Patriot (ou não; os detalhes variam). Essas são as mesmas baterias Patriot que falharam de forma tão embaraçosa na Arábia Saudita quando não conseguiram derrubar os antigos mísseis SCUD soviéticos disparados pelos iemenitas? E essas são as mesmas baterias Patriot cujos operadores, na Polônia, falharam recentemente em ver a chegada de mísseis ucranianos (que também eram de venerável safra soviética) e só souberam deles mais tarde por meio de reportagens? Esqueça isso! Eles custam $ 1 bilhão por lançador e $ 3 milhões por foguete, então devem ser bons para a Raytheon, e o que é bom para a Raytheon é bom para a América, ou algo assim. E daí se eles não tiverem chance contra nenhuma das armas russas de última geração? Não seja negativo!

Enquanto as discussões iam e vinham, Henry Kissinger, o grisalho veterano da geopolítica ocidental, enfiou a cabeça para fora do ovo de dinossauro no qual se escondeu nos últimos 70 milhões de anos e opinou que o conflito ucraniano deve ser concluído na mesa de negociações. Não importa que tudo o que ele propôs fosse pura bobagem e fracasso; o importante é que, para ele oferecer essa opinião neste momento, seus pelos do nariz geopolítico delicadamente trêmulos devem ter dito a ele que os EUA não vão prevalecer neste conflito, não importa o que aconteça, então é hora de parar de lutar e começar a conversar. Claramente, não fazia nenhuma diferença para ninguém, muito menos para o regime ucraniano, se a própria Ucrânia teria sucesso ou fracassaria – estava fadado ao fracasso desde pelo menos a Revolução Laranja de 2004, ou melhor, a ser sacrificada no altar da hegemonia dos EUA ao ser lançada contra a Rússia.

Se ignorarmos tudo o que convém ignorar nas palavras de “infinita sabedoria” de Kissinger, resta apenas que o conflito ucraniano “tem de ser concluído” e que tem de ser concluído “na mesa de negociações”. Mas acontece que essas duas pepitas de pensamento profundo também são altamente discutíveis. Primeiro, por que a Rússia se apressaria em encerrar o conflito? Estabeleceu um padrão de controle favorável e um domínio de escalada em todos os parâmetros possíveis: militar, econômico, político e cultural. E segundo, com quem a Rússia pode negociar? As mesmas pessoas que haviam prometido que a OTAN não se expandiria nem um centímetro para o leste quando a Rússia permitisse a reunificação da Alemanha? Bem, então, volte atrás e conversaremos![Ou com Angela Merkel, que recentemente confessou uma série de crimes contra humanidade ao admitir que manipulou a Lei Internacional ao assinar os Acordos de Minsk apenas para ganhar tempo para a OTAN armar os nazistas ucranianos? Ou ainda com Sholtz, que foi a Moscou fazer piadas sobre a limpeza étnica em curso no Donbass no início deste ano? – nota do tradutor]

Militarmente, a Rússia estabeleceu fronteiras defensáveis ​​dentro da antiga Ucrânia e está avançando lentamente em direção às fronteiras do que agora considera seu próprio território soberano. Ela estabeleceu rotas para homens e armas que podem permitir que a mesma sustente vários conflitos do tamanho da Ucrânia simultaneamente, virtualmente ad infinitum. Ela pode infligir danos pontuais ao fornecimento de energia da Ucrânia e outras infraestruturas à vontade e sem risco para si mesma, reduzindo gradualmente a capacidade da Ucrânia de sustentar qualquer tipo de campanha militar e, eventualmente, levando à desmilitarização total (sem indústria – sem potencial de guerra) e desnazificação (todos os nazistas mortos ou fugidos para a Europa ou América). Enquanto isso, no Ocidente a capacidade e a vontade de continuar fornecendo armas aos militares ucranianos (dois terços das quais desaparecem no meio do caminho por causa da corrupção) estão diminuindo. E depois há os novos brinquedos da Rússia: a mais nova geração de suas armas estratégicas, contra as quais os EUA não têm contra-medidas, está entrando em ação e, embora a doutrina da Rússia sem primeiro ataque nuclear permaneça em vigor, há um entendimento de que ela poderia ser revista se a situação justificar: “Crianças, comportem-se!”

Economicamente, a economia da Rússia sofreu um golpe de 2,5% ao longo de 2022, mas a maior parte disso ocorreu durante os dois primeiros trimestres, com uma recuperação constante depois disso. Com muitos de seus concorrentes internacionais se desculpando de forma indelicada por causa das sanções, a indústria doméstica da Rússia, do setor automotivo ao espaço aéreo e à construção naval, está prestes a florescer. As exportações de energia, que são muito importantes para encher os cofres federais, foram redirecionadas das nações hostis da UE e do G7 para as nações amigas do Sudeste Asiático e de outros lugares. Os volumes de exportação permaneceram estáveis, mas as receitas melhoraram devido aos preços mais altos, permitindo à Rússia manter uma relação dívida/PIB muito baixa e um superávit comercial saudável e investir pesadamente em projetos de infraestrutura sem contrair dívidas.

Politicamente, a Rússia está finalmente em posição de superar a ressaca da lassidão do final da União Soviética, a dissipação e a corrupção da década de 1990 e o abandono consumista da década de 2000 e voltar ao seu eu comunalista normal de todos por um e um por todos. Está redescobrindo rapidamente sua história de mil anos de defesa heroica da pátria no campo de batalha. Os demônios da emasculação[ e desvirilização – nota do tradutor] e do feminismo estão sendo exorcizados; os homens são novamente guerreiros e as mulheres guardiãs do lar da família. Para os homens, há duas opções honrosas – vitória e morte, ambas heróicas – e várias opções desonrosas: covardia, traição… O caráter nacional da Rússia é determinado pela natureza da Rússia: a vasta e inóspita paisagem, a enorme e vulnerável fronteira, a multidão de tribos, distintas, mas combinadas de formas fractais – mas o que o mantém em bom estado de funcionamento é um ataque periódico de guerra. Normalmente, algum pretenso hegemon mundial, seja o Papa Urbano II ou Genghis Khan ou Hitler ou Napoleão ou (não ria!) Joe Biden, briga com a Rússia, às vezes como a última coisa que faz.

Socialmente, desde a Revolução Russa de 1917 (e em São Petersburgo, Moscou e várias das maiores cidades provinciais desde bem antes disso), a Rússia se inclinou para o Ocidente. A Rússia foi o primeiro país a introduzir direitos iguais para mulheres e minorias. Ao longo do século 20, a Rússia liberalizou as leis para divórcio e novo casamento e, eventualmente, descriminalizou a homossexualidade e o aborto. Ao longo do caminho, a Rússia abraçou muitas tendências modernistas e pós-modernistas, em alguns casos indo longe demais e rápido demais, depois recuando horrorizada. E, talvez o pior de tudo, a Rússia foi infectada pela mais perniciosa ideologia ocidental, o marxismo. Marx ofereceu uma crítica válida do capitalismo como existia na época, mas além disso, sua teorização é talvez o exemplo mais flagrante de fracasso intelectual em larga escala que já existiu.

Enquanto isso, no Ocidente, a tendência em direção aos direitos individuais foi ao extremo, não apenas tolerando, mas fomentando e celebrando a homossexualidade e outros tipos de comportamento sexual aberrante (não reprodutivo), e agora insistindo na castração química e cirúrgica de crianças. Uma tangente transumanista separada, mas relacionada, procura apagar a fronteira entre o homem e a máquina. O Ocidente também está se movendo na direção da legalização da pedofilia; a eutanásia já é legal em muitos países e ativamente promovida como uma solução para a pobreza dos idosos no Canadá. Tudo o que resta depois disso é a legalização do canibalismo e do sacrifício humano. O que se perdeu entre todos esses direitos individuais é o direito das comunidades de injetar algum bom senso em tais indivíduos.

De certo modo, a legalização do canibalismo faria diferença em grau, não em espécie. Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas prenderam crianças russas em campos de concentração e as sangraram até a morte para fornecer transfusões a soldados alemães feridos. Até hoje geriatras privilegiados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha vivem de forma obscenamente velha por serem secretamente transfundidos com o sangue de crianças. E o fluxo constante e abundante de soldados ucranianos mortalmente feridos fornece um amplo recurso de doadores de órgãos para clínicas na Europa e em Israel. Esses tipos de práticas são parte integrante do humanismo ocidental.

À medida que esses desenvolvimentos se tornaram mais extremos, as exigências de que tais “valores ocidentais” sejam aceitos universalmente tornaram-se mais estridentes e arrogantes – e cada vez mais ofensivas para 85% da população mundial, tanto dentro quanto fora do Ocidente, que é socialmente conservador. Em grande parte do mundo, o sexo pré-marital e extraconjugal são ambos crimes e os nascidos fora do casamento ainda são chamados de “bastardos”, o casamento ainda é “até que a morte nos separe”, o respeito pelos mais velhos é incondicional e a “morte antes da desonra” é a lei não escrita. Todos esses são valores universais evoluídos da cultura humana, e qualquer desvio deles é temporário e resulta em extinção biológica. Esta lição foi formalizada em Romanos 6:32: “Porque o salário do pecado é a morte.”

É aqui que a Rússia está desempenhando um papel fundamental: lançou o desafio ao Ocidente coletivo, basicamente dizendo que pode se tornar tão degenerado quanto quiser, mas que não tem o direito de impor suas novas regras estranhas e distorcidas em qualquer outra pessoa. No processo, a Rússia tornou-se campeã mundial e defensora da sociedade e cultura conservadoras. Alguns outros países, especialmente os islâmicos, têm sido igualmente inflexíveis; por exemplo, a Indonésia acaba de criminalizar o adultério: não vá a Bali sem seu cônjuge legalmente casado do sexo oposto, ou você pode ser preso! Mas a abordagem islâmica carece de universalidade, baseando-se no que é definido como “haram” dentro do Islã, enquanto a reivindicação da Rússia é a soberania universal e a liberdade da opressão cultural ocidental.

Claramente, este não é um conflito sobre a Ucrânia, que é apenas o mais recente, e talvez o último, um peão em um jogo muito maior. Certamente começou bem antes de 22 de fevereiro de 2022, quando a Rússia anunciou o início de sua operação especial para desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia. Nem começou em 22 de fevereiro de 2014, quando o presidente da Ucrânia, Yanukovych, foi forçado a fugir da Ucrânia para a Rússia como resultado de um golpe violento e ilegal instigado e encorajado pelo Departamento de Estado dos EUA. A essa altura, como Victoria Nuland se gabou na época, os EUA já haviam gasto US$ 5 bilhões para desestabilizar politicamente a Ucrânia e transformá-la em uma anti-Rússia. É impossível precisar a data, mas o processo começou talvez já em 1945, quando os nazistas ucranianos, juntamente com vários outros nazistas, foram levados e receberam refúgio e apoio nos Estados Unidos e no Canadá.

Pode-se argumentar que o conflito da Rússia com o Ocidente se estende na História além do que os olhos podem ver, com pequenas interrupções. Houve um breve interbellum entre o Dia da Vitória, 09 de maio de 1945, e o discurso de Winston Churchill sobre a “Cortina de Ferro” em 05 de março de 1946 – menos de um ano! Outro tipo de interbellum mais longo existiu depois que a União Soviética foi (ilegalmente) dissolvida por Yeltsin e seus capangas em Belovezhskaya Pushcha em 08 de dezembro de 1991 (com o presidente George Bush pai sendo o primeiro a ser informado desse fato por meio de um telefonema de Yeltsin) e o início da Guerra Global do Terror, iniciada com muita pompa e circunstância em 11 de setembro de 2001, derrubando três arranha-céus de Nova York com excesso de seguro usando dois jatos Boeing.

Também não está claro até que ponto no futuro precisamos olhar para entender como a fase atual do conflito pode ser concluída. Certamente, a sugestão de Kissinger de que isso pode ser simplesmente negociado não é nada senão falsa, especialmente vindo na esteira da revelação da ex-Bundeskanzlerin Angela Merkel de que os Acordos de Minsk entre Kiev e Donetsk/Lugansk eram apenas uma manobra para ganhar tempo para Kiev se reagrupar e rearmar para melhor poder atacar Donetsk e Lugansk. Por que a Rússia desejaria negociar se o propósito declarado da negociação é uma tática de adiamento – e uma tática fracassada, já que os russos perceberam o estratagema e usaram os oito anos intermediários para… melhor desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia quando chegasse a hora.

Claramente, o período de tempo em questão deve se estender muito além do ponto no tempo em que a Ucrânia Oriental mais uma vez se torna parte da Rússia (bem, parte dela já o é!) ou um terreno baldio repleto de cadáveres em decomposição de mercenários poloneses e patrulhado por robôs de campo de batalha russos. Há algo mais importante acontecendo, que é que os EUA ficaram com fome e devem comer alguém imediatamente ou seu castelo de cartas financeiro entrará em colapso.

Os EUA são constitucionalmente incapazes de viver dentro de suas possibilidades, mas com a bomba de riqueza de petrodólares não funcionando mais e muito do resto do mundo já sangrado pelo capitalismo vampiro, o que resta para os EUA comerem? Ora, a União Europeia, claro! A base da prosperidade europeia tem sido o fornecimento constante de energia relativamente barata da Rússia e, ao cortá-la, os EUA tornaram a economia da Europa inoperante e pronta para ser saqueada à vontade. Agora, a Rússia deveria querer interferir nesse processo? Claro que não! Se o Ocidente coletivo deseja roer seus próprios membros, por que isso seria um problema para a Rússia? “Nunca interrompa seu inimigo enquanto ele estiver cometendo um erro; é falta de educação”, disse Napoleão na Batalha de Waterloo.

Se olharmos para trás o suficiente, veremos que o primeiro Drang nach Osten foi instigado pelo Papa Urbano II em 27 de novembro de 1095, abrindo a porta para as Cruzadas, chamando todos os cristãos na Europa para a guerra contra os muçulmanos, a fim de recuperar a Terra Santa, com um grito de “Deus vult!” ou “Deus quer!” Essa foi apenas uma maneira pomposa de ele dizer “Estou com fome! Traga-me alguém para comer!” Com certeza, em 1147 os alemães atacaram os eslavos, que não estavam nem perto da Terra Santa, mas deviam parecer saborosos na época, e continuaram atacando por mais de dois séculos!

Os suecos continuaram nisso até que Pedro, o Grande, os derrotou em Poltava (agora na Ucrânia) em 27 de junho de 1709. Eles ficaram quietos como ratos nos últimos três séculos, mas agora estão fazendo barulho sobre ingressar na OTAN (a atual aliança dos cruzados) e talvez seja hora de mandá-los de volta a 1709 usando alguns foguetes, livrando-os de extravagâncias como eletricidade, aquecimento central, água encanada e transporte automotivo. No momento em que escrevo, ainda há tempo para os suecos se decidirem. Isso também vale para os finlandeses, que ao longo dos séculos foram condicionados a fazer tudo o que os suecos mandam, exceto lentamente.

São seis séculos de cruzadas intermitentes! Existem alguns mosteiros na Rússia que foram saqueados e queimados por esses “cristãos” furiosos quatro ou cinco vezes. E então Napoleão atacou cem anos depois, e Hitler um pouco mais de um século depois disso… e agora isso… Mas não precisamos olhar tão longe no passado para prever com certeza razoável que este quase milênio das cruzadas ocidentais está chegando ao fim. Para fazer isso, precisamos apenas voltar até 11 de setembro de 2001 e o lançamento da Guerra Global do Terror. Até agora, todos os estratagemas e jogadas que os EUA tentaram nesta guerra falharam, com a Ucrânia como sua última resistência. Há muito pouco conhecimento ou compreensão dessas falhas no Ocidente, onde a mídia de massa é especialista em esconder tudo o que não se encaixa na narrativa como vencedora.

Na próxima semana, revisaremos os desenvolvimentos dos últimos dez anos. Isso é apenas um piscar de olhos na varredura da História, mas às vezes o colapso ocorre repentinamente, e devemos nos sentir privilegiados em testemunhar uma série tão importante de eventos.


Fonte: https://boosty.to/cluborlov/posts/071b8b64-7ddf-4040-829c-44789bd39773?from=email&from_type=new_post

Be First to Comment

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.