Misión Verdad – 12 de dezembro de 2024
A queda do governo Assad teoricamente remove um obstáculo geopolítico para a eventual construção do gasoduto Qatar-Arábia Saudita-Jordânia-Síria-Turquia (“Gasoduto Qatar-Turquia”), apoiado pelos EUA, que está planejado para passar pela Síria e oferecer à Europa uma alternativa ao gás russo.
A guerra nessa nação foi travada principalmente por causa da disputa entre a eventual implementação dessa rota energética e a do oleoduto Irã-Iraque-Síria, conhecido como “Gasoduto da Amizade”, em homenagem aos países envolvidos.
Dossiês secretos e relatórios de agências de inteligência dos EUA, da Arábia Saudita e de Israel, divulgados pelo Wikileaks, indicam que, quando al-Assad rejeitou a ligação de gás entre o Catar e a Turquia em 2009, os planejadores militares e de inteligência rapidamente chegaram a um consenso para fomentar um levante sunita na Síria para derrubá-lo.
A SÍRIA COMO UMA ENCRUZILHADA: A GUERRA DOS OLEODUTOS?
A ideia de transformar esse território da Ásia Ocidental em um centro de trânsito internacional para o transporte de recursos energéticos entre a Europa, os países do Golfo Pérsico e a bacia do Mar Cáspio já existe há algum tempo.
Em 2009, Bashar al-Assad anunciou a “estratégia dos quatro mares”, com o objetivo de transformar o país em um centro regional para o transporte de hidrocarbonetos entre o Golfo Pérsico e os mares Negro, Cáspio e Mediterrâneo.
O gasoduto Arab Gas Pipeline (AGP), que vai do Egito até a cidade libanesa de Trípoli (1.200 km), também passa por essa área, assim como o gasoduto Kirkuk-Baniyas, projetado para bombear o petróleo iraquiano para os mercados europeus.
A construção desse último foi interrompida em 1983 pelo falecido presidente Hafez Assad após uma forte deterioração nas relações com o governo iraquiano de Saddam Hussein. Entretanto, em 2010, Bashar al-Assad assinou um memorando de entendimento com o Iraque para retomar a construção de dois oleodutos e um gasoduto nessa rota.
INTERESSES EM GEOENERGIA
A Arábia Saudita tem um grande interesse na nova realidade do país. Durante a revolução colorida de 2011, um alto funcionário saudita disse a John Hannah, ex-chefe de gabinete de Dick Cheney: “O rei sabe que, além do colapso da própria República Islâmica, nada enfraqueceria mais o Irã do que perder a Síria”.
Em 2008, a União Europeia (UE), a Turquia, o Iraque, o Egito, a Jordânia, o Líbano e a Síria planejaram uma extensão do AGP de Aleppo até a cidade de Kilis, no sul da Turquia, que poderia então ser conectada ao gasoduto Nabucco.
Quando a guerra estourou em 2011, essa última seção estava em construção e nunca foi concluída. Mas surgiram problemas com o oleoduto, que custava US$ 1,5 milhão por quilômetro, mesmo antes do início do conflito.
O Catar está na disputa por causa de sua significativa produção de gás, compartilhando com o Irã o depósito de gás natural mais rico do mundo, o campo de South Pars/North Pars, e competindo com a República Islâmica e a Rússia pelo mercado europeu.
A Rússia produziu produziu 32% do gás natural consumido pelas residências europeias, enquanto o Catar apenas 9%, daí a suposta razão pela qual a Europa exigiu projetos como o projeto turco-catariano para reduzir sua dependência de Moscou.
Em maio de 2009, o Emir do Catar, Sheikh Tamim bin Hamad Al Thani, e o presidente turco Recep Tayyip Erdogan anunciaram o projeto do gasoduto Catar-Turquia. Uma vez em solo turco, o gás do poço North Pars do Qatar se conectaria ao gasoduto Nabucco planejado, mas inacabado.
Esse gasoduto deveria estar operacional em 2018 com a capacidade de transportar gás iraquiano e do Cáspio para a Áustria via Turquia e Bulgária. No entanto, ele sofreu um sério revés quando o Azerbaijão escolheu outro, o chamado gasoduto Trans-Adriatic, para transportar seu gás de 2017 a 2018 para a Itália via Turquia, Albânia e Grécia.
A Turquia, que fica na encruzilhada da Ásia e da Europa, esperou quase 40 anos para ser incluída na UE e recentemente solicitou sua adesão ao Brics. Algumas análises a consideram a melhor opção para facilitar o movimento de suprimentos de gás da Ásia Ocidental para a Europa; ela se beneficiaria das taxas de trânsito e de outras receitas geradas pela energia.
O governo de Ancara também pode garantir, com o apoio dos EUA, que todos os fornecedores de gás da Ásia Ocidental possam exportar livremente seus produtos para o país e facilitar seu papel de pivô nas rotas de energia para a Europa. Ele também pretende diversificar suas fontes de energia para sustentar um crescimento econômico sustentável.
CONSENSO E DISCORDÂNCIA
De uma perspectiva geopolítica, o Ocidente e as monarquias do Golfo Pérsico procurariam enfraquecer a influência do Irã e da Rússia na região da Ásia Ocidental, bem como minar a área sírio-iraniana e o Eixo de Resistência (Irã-Síria-Hezbollah).
O Major Rob Taylor, instrutor da Faculdade de Comando e Estado-Maior do Exército dos EUA, escreveu no Armed Forces Journal que os oleodutos rivais desempenham um papel fundamental no conflito.
Algumas análises sugerem que as rotas que levam o gás dos principais centros de produção da Rússia, do Mar Cáspio e do Golfo Pérsico para a Europa constituem um intrincado tabuleiro de xadrez estratégico no qual, após a derrubada de Al Assad, a UE sairia ganhando.
Os EUA já são o principal produtor de petróleo do mundo, pois impulsionaram a extração de óleo e gás de xisto. Após a explosão do Nord Stream e as sanções contra a Rússia, o país aumentou sua influência nos mercados de energia europeus.
Em teoria, a queda da Síria poderia contribuir para a implementação de um projeto de longa data baseado no uso dos recursos energéticos capturados do país, minando a posição dos exportadores regionais de petróleo e gás e forçando-os a aumentar a produção de hidrocarbonetos para competir.
Os oleodutos já em operação favorecem a Turquia. A extrema instabilidade no território sírio não seria favorável para as rotas planejadas, que incluem participantes como o Catar, que já tem rotas para exportar hidrocarbonetos para a Ásia. Doha direcionou quase todo o seu petróleo bruto para a Ásia em 2022 e mais de 70% de suas exportações de gás natural, enquanto 25% foram para a Europa.
O jornalista Pepe Escobar argumenta que não há evidências de que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos estejam colaborando com o Catar para consolidar rotas de energia planejadas, como o oleoduto Catar-Turquia.
DECLÍNIO DA SÍRIA DEVIDO À PILHAGEM DE PETRÓLEO DOS ESTADOS UNIDOS
A Síria, que produziu 600.000 barris por dia (b/d) de petróleo bruto em 1996, produziu apenas 334.000 b/d em 2010. Sua produção diminuiu constantemente, atingindo um mínimo de 20.581 b/d em 2018, e depois começou a se recuperar timidamente para 40.000 b/d este ano.
A importância regional e global do setor energético sírio foi destacada em 2009-2010 em conexão com o desenvolvimento de políticas para o setor pelo governo de Al Assad, que implementou uma nova estratégia energética para o país, motivada pela descoberta de importantes reservas de hidrocarbonetos nas bacias do Levante – ao longo das costas da Síria, Líbano, Israel, Gaza e Chipre – e do Nilo – no norte do Egito.
Desde 2016, as Forças Democráticas da Síria (SDF), apoiadas pelos EUA, assumiram gradualmente o controle de áreas anteriormente sob o controle do ISIS. Quase todos os recursos hídricos e energéticos, juntamente com o potencial de produção e exportação de que o ISIS desfrutava e financiava suas atividades, caíram sob a hegemonia desses grupos armados.
Esses são o campo de gás Conoco e os campos de petróleo localizados em Raqqa e Hasaka, onde foram descobertos mais de dez campos de petróleo e gás, especificamente Al Omar, localizado a leste de Deir Ez Zor. O distrito de Zor está nas mãos das SDF.
Por outro lado, o governo controlava os campos de petróleo e gás de Shaer em Homs, bem como vários poços de petróleo no oeste do distrito de Deir Ez Zor. Apenas um ou dois campos de petróleo no sul da cidade, e em algum lugar próximo à cidade de Abukamal, permaneceram sob o controle do ISIS.
Em 2019, o governo sírio tinha o controle de mais de 30% dos recursos energéticos do país, enquanto as milícias apoiadas pelos EUA controlavam quase 70%. A receita potencial desses recursos era equivalente a US$ 8,5 bilhões.
Os campos do leste controlados por esses grupos produziram mais 25.000 b/d, uma quantidade total de aproximadamente 50.000 b/d, 90.000 b/d a menos do que o necessário para atender à demanda doméstica da Síria.
Em 2022, a agência estatal SANA informou que “as forças de ocupação dos EUA instalaram uma refinaria de petróleo com capacidade para refinar 3.000 b/d, em cooperação com a milícia SDF, nos campos de Remelan, no nordeste da província”.
De acordo com o Ministério das Relações Exteriores da Síria, de 2011 até o final do primeiro semestre de 2023, o valor dos danos causados ao setor de petróleo e minerais da Síria como resultado da agressão, saque e sabotagem dos EUA totalizou US$ 115,2 bilhões.
Em 2023, o então Ministério das Relações Exteriores da Síria destacou que as perdas diretas no setor petrolífero do país chegavam a US$ 27,5 bilhões.
De acordo com as estimativas do US Geological Survey, as reservas potenciais de gás offshore da Síria chegam a 700 bilhões de metros cúbicos (bcm), mais do que o dobro do volume de gás em terra, enquanto suas reservas de petróleo são de apenas 50 milhões de toneladas, um sexto de suas reservas de petróleo em terra.
RECURSOS E HEGEMONIA OCIDENTAL
A derrota do governo de Assad é mais um passo para que o Ocidente tenha acesso aos recursos energéticos da Ásia Ocidental por meio do controle hegemônico das principais rotas de energia. Dessa forma, busca-se minar a influência do Irã e da Rússia nessa área.
O declínio da atividade petrolífera no Levante, como resultado da guerra imposta e das sanções ilegais, facilitou o controle dos recursos energéticos do país. Esse é um método de controle e pilhagem diferente de invasões como a do Iraque; nesse caso, os Estados Unidos e a Europa não informam as baixas das tropas, pois financiaram milícias e grupos terroristas.
A guerra por recursos continua na Ásia Ocidental, bem como no resto do mundo. A crise sobre o acesso a matérias-primas paira no horizonte geopolítico e, ao que tudo indica, continuará a ser a justificativa para uma guerra total.
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