Maria Fé Celi Reyna (RT) – 21 de julho de 2023
Os golpes de Estado de hoje não são mais como os do passado. Já se foram as imagens de tanques invadindo a sede do executivo para tomar o poder. Na última década, vimos o uso da lei para realizar golpes. O caso de Dilma Rousseff deixou clara essa estratégia. Por isso, os poderes constituídos devem ser mais cuidadosos.
Os golpes de Estado são agora mais sutis. Eles envolvem a coordenação de diferentes atores, a imprensa desempenha um papel estelar e trabalham um a um até encurralar o governante no poder para forçá-lo a renunciar ou usar um vácuo constitucional para desocupá-lo e, assim, sair pela culatra da vontade popular, como no Peru. A estrada solitária do meu país começou em 07 de dezembro de 2022, embora os preparativos tenham começado muito antes.
No dia seguinte ao segundo turno, o terceiro turno começou. Primeiro, houve uma acusação de fraude inexistente. Após 13 meses de governo, o parlamento havia censurado 70 ministros; as iniciativas do Executivo foram bloqueadas, e Pedro Castillo havia enfrentado duas tentativas de vacância graças ao uso de uma figura de “incapacidade moral” contemplada na Constituição, mas que é utilizada caprichosamente pela oposição. O que é incapacidade moral? O que quer que a oposição decida.
Para afastar o presidente era preciso inventar denúncias e, para isso, o papel da mídia e da Procuradoria-Geral da República foi fundamental. A concentrada imprensa peruana transmitia pela manhã, tarde e noite (mesmo em programas de entretenimento), notícias negativas sobre o presidente. Muitas delas eram falsas e rapidamente desmentidas, mas esses meios de comunicação não são muito dedicados a retificações.
Pedro Castillo foi retratado como um burro, tratado como um incapaz que não sabia governar, mas também como um mafioso que, em pouco tempo, conseguiu armar uma rede de corrupção para roubar o Estado. Enquanto isso, o Ministério Público abriu investigações com base nas denúncias e suas ações alimentaram a mídia. Assim, chegamos à terceira tentativa de deposição.
Desta vez, Pedro Castillo, em sentido metafórico, “morreu matando”. Seja porque acreditou ter o apoio das Forças Armadas ou porque decidiu por conta própria, no dia 07 de dezembro, antes da deposição, fazer o que o país clamava: dissolver o Congresso, convocar novas eleições, bem como cumprir uma de suas mais importantes promessas de campanha, a de convocar uma Assembleia Constituinte. Com esse ato, tornou-se o presidente mais consistente, pelo menos, deste século.
A prisão de Castillo despertou a ira de milhões em todo o país, mas em menor escala na racista Lima, que historicamente viveu de costas para o resto do Peru. Infelizmente, por causa do crônico centralismo do Peru, se algo não acontece na capital, é como se não existisse. Assim, a imprensa criou a narrativa perfeita que foi papagaiada pela mídia internacional: Pedro Castillo está preso por tentativa de golpe de Estado e, com exceção de alguns apoiadores que saíram para protestar, o país concorda. Dina Boluarte é a presidente legítima. Fim da história.
Não contavam com o fato de que o presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, e seu homólogo colombiano, Gustavo Petro, quase em paralelo, iriam denunciar o ocorrido no Peru. Não foram os únicos presidentes a fazê-lo, mas junto com o líder boliviano Evo Morales, foram os que mais criticaram o ocorrido e romperam com a narrativa que estava sendo veiculada no exterior pelos poderes instituídos.
Nos meses seguintes, presenciamos inúmeras tensões diplomáticas. Quanto maiores os abusos contra a população peruana, mais fortes foram as denúncias de líderes internacionais e líderes políticos que terminaram com o governo de fato peruano convocando os embaixadores desses países para consulta.
A tensão com o México atingiu outro nível quando a esposa e os filhos pequenos do presidente Castillo receberam asilo. O Peru passou a declarar o embaixador mexicano persona non grata e ele partiu junto com a família presidencial. Para cada resposta de López Obrador, havia uma reação diplomática de Lima.
Isso foi seguido pela retirada do embaixador peruano no México e, finalmente, o parlamento peruano – que goza de índices de aprovação de um dígito – declarou o presidente mexicano persona non grata. Ao que López Obrador respondeu que era “uma medalha de honra ” assim declarada por uma elite política como a peruana.
A Aliança do Pacífico e a crise peruana
Em meio à crise nas relações bilaterais, havia uma questão pendente: a presidência pro tempore da Aliança do Pacífico (formada por Chile, Colômbia, México e Peru). A posição muda a cada ano e segue em ordem alfabética, então foi a vez do Peru.
Como costuma acontecer com governos ilegais e/ou ilegítimos, a primeira coisa de que precisam é o reconhecimento internacional. No Peru, é especialmente importante devido à sua dependência do mercado internacional. Terminar isolado poderia ser fatal para a já abalada economia do país andino, então a presidência rotativa era um aval internacional necessário.
Vale lembrar que a crise pela presidência da Aliança começou quando Castillo ainda era presidente. O parlamento peruano recusou-se a dar-lhe qualquer autorização para deixar o país, então López Obrador decidiu cancelar a reunião de entrega até que o presidente peruano pudesse ir ao México. No entanto, ele foi primeiro afastado do cargo e preso.
Meses depois, com Boluarte no comando, o Peru reivindicou a presidência. López Obrador disse que não poderia entregá-lo a Lima porque seu governo não o reconhecia, mas estava disposto a entregá-lo à Colômbia ou ao Chile, para que tomassem uma decisão.
Devido às tensões com Bogotá, de onde Boluarte também retirou o embaixador peruano, o único país que restou foi o Chile. E Gabriel Boric não falhou.
O presidente chileno, sempre tão loquaz quando se trata de Cuba ou da Venezuela, calou-se diante do Peru. Sua intervenção na cúpula da CELAC [Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos – nota da tradutora] para criticar Boluarte pelos assassinatos durante os protestos e a entrada de tanques na Universidad Mayor de San Marcos parecia indicar que ele também assumiria uma posição crítica, mas só houve mais silêncio.
Por fim, para desobstruir o impasse diplomático, o governo chileno se ofereceu para receber a presidência pro tempore do México e depois entregá-la ao Peru, o que aconteceu coincidentemente (note o sarcasmo) quando houve uma crise de migrantes que buscavam sair do Chile, mas o governo de Boluarte fechou a fronteira para eles.
A presidência ‘pro tempore‘ que chegará ao Peru foi vendida como um grande triunfo nacional e uma derrota para o “intrometido” López Obrador. Isso provavelmente apenas tornará a estrada solitária do Peru um pouco mais longa.
Para isso é necessário entender um pouco da história e da composição da Aliança. Foi criada em 2011 por iniciativa de um fanático, desta vez à direita, Alan Garcia, diante do avanço da ALBA [Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América, anteriormente Alternativa Bolivariana para as Américas] e da CELAC. Foi criada com um propósito político disfarçado de discurso econômico e tecnocrático. Era uma Aliança concebida para impedir a tão necessária integração da região, que na época era promovida por lideranças de esquerda.
Hoje, a Aliança ostenta números espetaculares. Segundo seu site, em 2019, o bloco respondia por 41% do PIB e 38% dos investimentos diretos na América Latina e no Caribe. Os quatro países têm uma população de 230 milhões e um PIB per capita, em média, de US$ 19.050. O que muitos parecem esquecer é que esses números só são possíveis porque o México faz parte da Aliança. Sem o México, torna-se totalmente irrelevante.
Se o governo de fato de Boluarte continuar, será interessante ver o malabarismo discursivo que ela terá que fazer para justificar que o presidente da economia mais importante da Aliança não poderá comparecer à reunião porque não é bem-vindo no Peru e, também, como ele convida o presidente colombiano depois de ter retirado o embaixador peruano naquele país. Pode acabar sendo um encontro bilateral entre Boric e Boluarte.
Parece mais que López Obrador tirou um peso da cabeça. O México tem problemas mais sérios para resolver do que seu vizinho do norte. Além disso, um ano eleitoral está chegando e ele estará mais envolvido na política doméstica. Na Colômbia, onde está aplicando o mesmo roteiro de Castillo, o Petro estará mais focado em evitar ser deposto. Quanto ao Chile, os chilenos irão às urnas para votar entre a Constituição de Pinochet e outra escrita pela extrema direita. A Alianza não será a prioridade de ninguém.
O Peru terá a presidência ‘pro tempore‘, mas nada mais. Ele isolou México, Colômbia, Bolívia, Argentina e Honduras, reagindo histericamente às críticas e denúncias de abusos de direitos humanos por parte da polícia e das forças militares peruanas, claramente registradas.
O Brasil reconheceu Boluarte, mas continua distante e o Chile não parece muito proativo na relação com o Peru. A presidente de facto só se sustenta com o apoio dos EUA. Ouso dizer que o Peru nunca esteve tão sozinho.
Por enquanto, Boluarte está, na prática, isolada, mas com o passar do tempo, mais cedo ou mais tarde, terá que lidar com o Peru. No próximo ano, a nação andina vai sediar a reunião da APEC [Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico – nota da tradutora] e os países asiáticos estão lidando com lógicas muito diferentes. Quanto mais tempo a sociedade peruana despolitizada e dividida demorar para remover esse governo, mais os governos o reconhecerão, por mais incômodo que seja.
Este artigo foi traduzido do espanhol de um artigo de opinião originalmente publicado na RT.
Fonte: https://peoplesdispatch.org/2023/07/21/perus-lonely-road-on-boluartes-shoulders-whats-next-for-the-pacific-alliance
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