A Engenharia da Fome Mundial

Dmitry Orlov – 29 de maio de 2022 – [Traduzido e publicado com a permissão do autor]

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A mais recente falsa narrativa ocidental, emanando de algum pequenino cérebro secreto localizado, provavelmente, em algum lugar nos subúrbios da Virgínia, é que Putin é o responsável pela iminente fome mundial por causa da guerra na Ucrânia. “Putin bloqueia as exportações de grãos da Ucrânia! A fome mundial se aproxima!” grita a manchete de jornal falsa, habilmente forjada. Uma análise muito simples dos números disponíveis é suficiente para provar que essa narrativa é falsa.

Em 2021, a Rússia e a Ucrânia juntas forneceram ao mercado mundial 75% de seu óleo de girassol, 29% de cevada, 28% de trigo e 15% de milho. Quase 50 países dependem da Rússia e da Ucrânia para, pelo menos, 30% de seu trigo, dos quais 26 dependem deles para mais da metade. A safra de grãos do ano passado na Ucrânia foi sem precedentes: 107 milhões de toneladas, das quais, em números redondos, foram 33 milhões de trigo, 40 milhões de milho e 10 milhões de cevada, superando a safra de 2020 em 22% em tonelagem e em 23% de rendimento. O consumo anual de trigo na Ucrânia é de apenas cerca de 4 milhões de toneladas. Sem surpresa, os ucranianos decidiram exportar 70 milhões de toneladas. Esta foi uma decisão forçada: não há onde armazenar essa quantidade de grãos. Os 15 maiores elevadores de grãos, todos de propriedade estrangeira, somam menos de 21 milhões de toneladas. Todos esses elevadores estão no centro e oeste do país e permanecem imperturbados pela Operação Especial da Rússia no leste.

Até 1º de julho deste ano, a Ucrânia espera exportar no máximo 47 milhões de toneladas de grãos. Poderia exportar mais? Não, não poderia. E isso não tem nada a ver com os malvados russos. Na respeitada opinião da Associação Ucraniana de Grãos e seu chefe Nikolai Gorbachëv, a capacidade de exportação de grãos dos portos ucranianos é de apenas 1,2-1,5 milhão de toneladas por mês. Eles poderiam convocar todas as marinhas do mundo para fornecer segurança e ainda assim não conseguiriam embarcar mais de 1,5 milhão de toneladas por mês. Tampouco o trilho oferece qualquer tipo de alternativa. A rota pela Polônia é complicada por uma diferença na bitola ferroviária, enquanto o transporte de grãos para o porto lituano de Klaipeda, agora em grande parte em desuso, passaria pela Bielorrússia. Claro, Alexander Lukashenko ficaria feliz em permitir esse trânsito – assim que o Ocidente suspender todas as sanções contra a Bielorrússia e compensá-la pelas perdas que causaram. Tudo o que resta é o transporte rodoviário em direção ao oeste, que agora está sendo usado muito amplamente, somando… pouco mais de 1 milhão de toneladas nos últimos meses.

Em resumo, a Ucrânia estava completamente despreparada para a safra abundante do ano passado. Quaisquer recursos que tivesse para se preparar para isso foram desperdiçados na preparação de uma operação militar epicamente mal sucedida contra suas províncias do leste e do sul da Rússia. E, então, deu um tiro em ambos os pés, minando os acessos ao porto de Odessa. Não só isso, mas os minaram de forma incompetente: algumas das minas perderam suas âncoras em uma tempestade e agora estão à deriva no Mar Negro, chegando até rotas marítimas distantes como a linha marítima próxima ao Bósforo, na Turquia.

Isso significa que, devido a essas dificuldades com as exportações de grãos da Ucrânia, o mundo está condenado à fome? Oh, por favor! Mesmo que a Ucrânia exporte com sucesso os 11 milhões de toneladas restantes de trigo como havia planejado, isso não salvaria ninguém, porque seria apenas 4% da demanda mundial. Da mesma forma com o milho: a demanda global é de 200 milhões de toneladas, enquanto as exportações ucranianas são geralmente em torno de 30-35 milhões de toneladas. Então, vamos admitir que a Ucrânia e a situação ao seu redor não têm muito a ver com a ameaça iminente da fome no mundo. O que tem a ver, então?

Vamos nos voltar por um momento àqueles propagandistas pró-russos da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Segundo seus especialistas, em fevereiro de 2022, antes do início da operação da Rússia no leste da Ucrânia, os preços dos produtos agrícolas atingiram mais um pico, 2,2% acima de fevereiro de 2011 e 21% acima de 2021. Isso não aconteceu por causa da Rússia, mas por causa da impressão de dinheiro relacionada à pandemia e dos altos preços de energia, fertilizantes e outros recursos agrícolas. Além disso, desde o início da ação militar na Ucrânia, 23 países impuseram limites rígidos às exportações agrícolas. O mais significativo deles é a Índia, que proibiu a exportação de grãos por causa de uma terrível seca.

A única coisa pela qual se pode dizer que a Rússia é responsável é restringir suas exportações de certos fertilizantes, o que fez para proteger os suprimentos de seus agricultores. Em 2020, a Rússia foi o principal exportador de fertilizantes nitrogenados, o segundo maior de potássio e o terceiro maior de fósforo. O mercado mundial está agora aquém de cerca de um quarto de suas necessidades de fertilizantes e, se esse problema não for resolvido, a fome é de fato inevitável para muitos países. Mas mesmo aqui a culpa da Rússia é apenas parcial: foram as sanções anti-russas que causaram preços muito altos para o gás natural, que é a principal matéria-prima para a produção de fertilizantes nitrogenados.

Para concluir: alguns idiotas decidiram usar a Covid como desculpa para encher o planeta com dinheiro de helicóptero, esmagar o mercado europeu de gás natural, impor “sanções do inferno” à Rússia e depois culpar tudo na Rússia e que isso é, de alguma forma, uma estratégia vencedora. Bem, idiotas, não é? Para completar, há agora uma grave escassez de farinha de trigo nas partes ainda não liberadas da antiga Ucrânia: o que está à venda lá foi importado da Turquia! Essa idiotice é contagiosa?

Crédito: Rhett Butler


Fonte: https://boosty.to/cluborlov

4 Comments

  1. Fisher Tiger said:

    Recentemente se avolumam notícias e denúncias sobre sabotagens de armazéns, centros de beneficiamento pegando fogo, produtores sendo chantageados a destruir sua produção, campanhas de medo que levam pecuaristas a matarem rebanhos inteiros, etc, especialmente nos EUA e na Europa.. ao que tudo indica, foi intensificado no período do covid.. realmente, não é culpa do Putin, é uma escassez artificialmente produzida há tempos.
    Até porque, os relatórios dos BRICs tem como diretriz central controlar estoques reguladores e promover outras políticas de soberania alimentar. Dai, talvez, uma expressão da inflação controlada na China em menor medida na Rússia.

    31 May, 2022
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    • Lady Bharani said:

      Oi Fisher Tiger, boa tarde! Tudo bem?!

      Sim, sim, essa construção de uma escassez artificial – artificial scarcity, termo ao qual alguns analistas se referem, rola há muitas décadas e caminha junto à mentalidade malthusiana de engelharia social. Você chamou muito bem a atenção ao fato de que isso tb acontece nas matrizes: os EUA e a Europa. Aqui na América Latina e na Ásia tb temos vários casos assim. Índia, Brasil, Casaquistão, enfim em quase todos os grandes países agro-pecuários. E é bom lembrar o caso catastrófico do Sri Lanka, que tentou transformar sua agricultura em 100% orgânica e foi um enorme tiro no pé!

      Já que vc comentou sobre o BRICS, uma alternativa de busca de soberania que temos visto vem do Leste. Gosto muito da proposição do Glazyev, “Rumo ao crescimento sustentávelatravés de uma ordem economica justa”. E espero que possamos ver e colher um pouco os frutos dessa nova ordem ainda nessa vida – embora saibamos que isso é um processo que vai levar décadas.

      31 May, 2022
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      • Fisher Tiger said:

        O link do relatório do BRICs está abaixo. Vale a pena dar uma olhada:
        https://static.portaldaindustria.com.br/portaldaindustria/noticias/media/filer_public/25/82/2582d74c-53f8-4140-a7bc-12551408a573/final_annual_report_bbc_2021.pdf

        O Glazyev deveria virar referência de estudos entre os economistas (acho que estou pedindo muito para esse pesssoal, rs).
        A Rússia está num movimento muito interessante de substituição de importações, talvez hoje eles estejam entre as cinco economias do planeta após essa vitória sobre a OTAN na Ucrânia.
        E nenhum ‘economista’ fala desse movimento tectônico que está acontecendo por lá.

        1 June, 2022
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        • Lady Bharani said:

          Oi, sim, concordo: a obra do Glazyev deveria ser estudada no mundo todo. Estou lendo seu último livro, escrito em 2015 e publicado no ano seguinte. O Quantum Bird publicou um post por aqui há algumas semanas com um link de acesso à tradução em inglês do livro. Ele e a esposa são ucranianos – no livro não há qualquer tipo de discriminação.

          E é impressionante quão atual e imprescindível o livro se tornou (acho que sempre foi). É como se fôssemos lendo uma espécie de oráculo pq muito do que ele escreveu há 6 anos se concretizou e está se concretizando. Vide a situação da Ucrânia hoje e as reações de cancelamento do Ocidente à Rússia. Suas análises históricas tb são mto interessantes. Sem nem falar no vocabulário. Tenho aprendido pérolas da língua inglesa ao lê-lo.

          Muito obrigada pelo relatório! Vou fuçá-lo.

          Pois é, economia encabeçada por moeda sólida lastreada em riquezas verdadeiras, que podemos tocar e usufruir, é algo bem raro de acontecer hoje em dia. E, esses economistas acostumados à bolha de “financeirização” americana de 1,4 quadrilhões de dólares, a-cada-dia-mais-próxima-de-se-estourar-e-nos-lançar-na-crise-mais-hecatombica-da-nossa-história, não têm mesmo mais a mínima ideia do que seja produção de riqueza baseada em produção de manufatura, por ex. Décadas bem difíceis nos esperam.

          Como Glazyev disse em uma entrevista, “eventos como esses só acontecem uma vez a cd século [de haver] mudanças simultâneas nas estruturas tecnológicas e econômicas mundiais.” Ainda segundo ele, mudanças de estruturas econômicas globais geralmente são acompanhadas por guerras mundiais e revoluções sociais.

          1 June, 2022
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