Pepe Escobar – 17 de agosto de 2022 – [Publicado originalmente no The Cradle e amplamente compartilhado. Traduzido e publicado aqui com a permissão do autor]
SAMARCANDA – Interconectar a Eurásia Interna é um exercício de equilíbrio taoísta: adicionar peça por peça, pacientemente, num gigantesco quebra-cabeça. Leva tempo, requer habilidade, visão e, é claro, grandes avanços.
Uma peça chave foi adicionada ao quebra-cabeça recentemente no Uzbequistão, reforçando as ligações entre a Iniciativa de Cinturão e Estrada (BRI) [em inglês, Belt and Road Initiative – nota do tradutor] e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC)[em inglês, International North-South Transport Corridor – nota do tradutor].
O governo de
Mirzoyoyev em Tashkent está profundamente engajado em concluir um outro corredor de transporte da Ásia Central: uma ferrovia China-Kyrgyzstan-Uzbequistão-Afeganistão.
Isso esteve no foco de uma reunião entre o presidente do conselho de administração de Temir Yullari – as ferrovias nacionais uzbeques – e seus homólogos do Quirguistão e do Afeganistão, bem como os gerentes da empresa chinesa de logística do Corredor Wakhan.
Em termos da complexa interseção de Xinjiang com a Ásia Central e do Sul, isto não poderia ser mais inovador, como parte do que eu chamo de Guerra dos Corredores Econômicos.
Os uzbeques classificaram pragmaticamente o novo corredor como essencial para o transporte de carga sob tarifas baixas – mas isso vai muito além dos meros cálculos comerciais.
Imagine, na prática, contêineres de carga vindo de trem de Kashgar em Xinjiang para Osh no Quirguistão e depois para Hairatan no Afeganistão. O volume está planejado para atingir 60.000 contêineres somente no primeiro ano.
Isso seria crucial para desenvolver o comércio produtivo do Afeganistão – longe da obsessão da “ajuda” da ocupação americana. Os produtos afegãos poderiam finalmente ser facilmente exportados para os vizinhos da Ásia Central e também para a China, por exemplo, para o movimentado mercado de Kashgar.
E esse fator estabilizador fortaleceria os cofres do Talibã, agora que a liderança em Cabul está muito interessada em comprar petróleo, gás e trigo russos com descontos muito atraentes.
Como fazer com que o Afeganistão volte ao jogo
Há também a possibilidade de implementar um projeto rodoviário a partir desta ferrovia, que atravessaria o corredor ultra-estratégico de Wakhan – algo que Pequim já vem contemplando há alguns anos.
O Wakhan é compartilhado pelo norte do Afeganistão e pela Região Autônoma Gorno-Badakhshan do Tadjiquistão: uma longa, árida e espetacular faixa geológica, avançando até Xinjiang.
A esta altura já é claro não só para Cabul, mas também para os membros da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) [Shangai Cooperation Organization – nota do tradutor], que os americanos humilhados não restituirão os bilhões de dólares “confiscados” das reservas do Banco Central Afegão – algo que pelo menos mitigaria a atual e terrível crise econômica do Afeganistão e a iminente fome em massa.
Portanto, o Plano B é para reforçar as cadeias de abastecimento – por enquanto devastadas – e comércio afegãs. A Rússia ficará encarregada da segurança de toda a encruzilhada centro-sul asiática. A China fornecerá a maior parte do financiamento. E é aí que a ferrovia China-Quirguistão-Uzbequistão-Afeganistão se encaixa.
A China vê a estrada através de Wakhan – uma proposta muito complicada – como um corredor BRI extra, ligado à rodovia Pamir, pavimentada pela China, no Tajiquistão, e às estradas quirguizistanesas reconstruídas pela China.
O Exército de Libertação do Povo (PLA) já construiu uma estrada de acesso de 80 km desde o trecho chinês da Rodovia Karakoram – antes de chegar à fronteira com o Paquistão – até uma passagem de montanha em Wakhan, atualmente disponível apenas para carros e jipes.
O próximo passo chinês seria avançar mais 450 km por essa estrada, até Fayzabad, a capital da província afegã de Badakhshan. Isso constituiria o corredor de apoio rodoviário para a ferrovia China-Central Ásia-Afeganistão.
O ponto-chave é que os chineses, tanto quanto os usbeques, compreendem plenamente a localização extremamente estratégica do Afeganistão: não apenas como uma encruzilhada da Ásia Central/Sul, conectando-se aos principais portos marítimos do Paquistão e do Irã (Karachi, Gwadar, Chabahar) e ao Mar Cáspio via Turcomenistão, mas também ajudando o Uzbequistão sem litoral a se conectar aos mercados do Sul da Ásia.
Tudo isso faz parte do labirinto do corredor BRI; e, ao mesmo tempo, interage com o INSTC por causa do papel-chave do Irã (ele próprio cada vez mais ligado à Rússia).
Teerã já está empenhada na construção de uma ferrovia para Herat, no oeste do Afeganistão ( e estrada ja foi reconstruída). Então teremos o Afeganistão reconstruído tanto no BRI (como parte do Corredor Econômico China-Paquistão, CPEC) quanto no INSTC, dando impulso a mais um projeto: uma ferrovia Turcomenistão-Afeganistão-Tajiquistão (TAT), para ser ligada ao Irã e, portanto, ao INSTC.
Do Karakoram ao Pakafuz
A rodovia Karakoram – cuja parte norte foi reconstruída pelos chineses – pode mais cedo ou mais tarde obter uma irmã ferroviária. Os chineses estão pensado nisso desde 2014.
Em 2016, uma ferrovia da fronteira China-Paquistão até Gilgit, nas áreas norte e depois mais abaixo até Peshawar, foi consagrada como parte do projeto do Corredor Econômico China-Paquistão (CPEC)[em inglês, China-Pakistan Economic Corridor – nota do tradutor]. Mas então nada aconteceu: a ferrovia não foi incluída no Plano de Longo Prazo do CPEC 2017-2030.
Isso pode eventualmente acontecer na próxima década: a engenharia e a logística são um enorme desafio, assim como foram para a construção da rodovia Karakoram.
E depois há o ângulo “siga o dinheiro”. Os dois maiores bancos chineses que financiam projetos BRI – e portanto CPEC – são o China Development Bank e o Export Import Bank. Mesmo antes da Covid-19, eles já estavam diminuindo seus empréstimos. E com a Covid-19, eles agora têm que equilibrar projetos estrangeiros com empréstimos domésticos para a economia chinesa.
A prioridade da conectividade passou a ser a ferrovia Paquistão-Afeganistão-Uzbequistão (Pakafuz).
O trecho chave do Pakafuz liga Peshawar (a capital das áreas tribais) a Cabul. Quando estiver terminado, veremos Pakafuz interagindo diretamente com a próxima ferrovia China-Central Ásia-Afeganistão: um novo labirinto BRI diretamente ligado ao INSTC.
Todos os desenvolvimentos acima revelam sua verdadeira complexidade quando vemos que eles estão simultaneamente inseridos na interação do BRI e do INSTC e na harmonização entre o BRI e a União Econômica da Eurásia (EAEU).
Essencialmente, em termos geopolíticos e geoeconômicos, a relação entre os projetos BRI e EAEU permite que a Rússia e a China cooperem em toda a Eurásia, evitando uma corrida para alcançar uma posição dominante na Heartland.
Por exemplo, tanto Pequim quanto Moscou concordam sobre a necessidade suprema de estabilizar o Afeganistão e ajudá-lo a administrar uma economia sustentável.
Em paralelo, alguns membros importantes do BRI – como o Uzbequistão – não são membros da EAEU, mas isso é compensado por sua participação na SCO. Ao mesmo tempo, o entente BRI-EAEU facilita a cooperação econômica entre os membros da EAEU, como o Quirguistão e a China.
Pequim obteve de fato a aprovação total de Moscou para investir em Belarus, Cazaquistão, Quirguistão e Armênia, todos membros da EAEU. Uma futura moeda ou cesta de moedas que contornem o dólar americano está sendo discutida conjuntamente entre a EAEU – liderada por Sergei Glazyev – e a China.
A China se concentra na Ásia Central/Oeste
Não há dúvida de que a guerra por procuração na Ucrânia entre os EUA e a Rússia tem criado sérios problemas para a expansão do BRI. Afinal de contas, a guerra dos EUA contra a Rússia também é uma guerra contra o BRI.
Os três principais corredores BRI de Xinjiang para a Europa são a Ponte Terrestre da Nova Eurásia, o Corredor Econômico China-Ásia Central-Ásia Ocidental e o Corredor Econômico China-Rússia-Mongólia.
A Nova Ponte Terrestre Eurásia usa a Trans-Siberiana e uma segunda ligação através de Xinjiang-Kazakhstan (via o porto de terra firme de Khorgos) e depois a Rússia. O corredor via Mongólia é de fato dois corredores: um de Pequim-Tianjin-Hebei até a Mongólia Interior e depois a Rússia; e o outro de Dalian e Shenyang e depois para Chita na Rússia, perto da fronteira chinesa.
Na situação atual, os chineses não estão usando tanto a Ponte Terrestre e o corredor mongol como antes, principalmente por causa das sanções ocidentais contra a Rússia. A ênfase atual do BRI é via Ásia Central e Ásia Ocidental, com uma ramificação que se estende em direção ao Golfo Pérsico e sobre o Mediterrâneo.
E é aqui que vemos outro nível – altamente complexo – de interseção se desenvolver rapidamente: como a crescente importância da Ásia Central e da Ásia Ocidental para a China se mistura com a crescente importância do INSTC tanto para a Rússia quanto para o Irã em seu comércio com a Índia.
Chamem-lhe de “o vetor amigável” da Guerra dos Corredores de Transporte.
O “vetor hardcore” – guerra real – já está sendo implantado pelos suspeitos habituais. Eles estão previsivelmente inclinados a desestabilizar e/ou quebrar qualquer nó de integração BRI/INSTC/EAEU/SCO Eurásia, por qualquer meio necessário: seja na Ucrânia, Afeganistão, Balochistão, nos “stans” da Ásia Central ou no Xinjiang.
No que diz respeito aos principais atores eurasiáticos, isso será um trem anglo-americano para lugar nenhum.
Fontes:
https://thecradle.co/Article/Columns/14439
https://thesaker.is/a-eurasian-jigsaw-bri-and-instc-interconnectivity-will-complete-the-puzzle/
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