A agonia do Ocidente

Thierry Meyssan – Paris – 05 de julho de 2022

Sergey Lavrov costumava comparar o Ocidente a um predador ferido. Segundo ele, este não deveria ser provocado porque seria tomado pela loucura e poderia quebrar tudo. É melhor acompanhá-lo ao cemitério. O Ocidente não se vê assim. Washington e Londres estão liderando uma cruzada contra Moscou e Pequim. Eles rugem e estão prontos para qualquer coisa. Mas o quê, realmente, eles podem fazer?

Este artigo é uma continuação de:

1. “A Rússia quer forçar os EUA a respeitar a Carta da ONU“, 04 de janeiro de 2022.

2. “Washington segue o plano RAND no Cazaquistão, depois na Transnístria“, 11 de janeiro de 2022.

3. “Washington se recusa a ouvir Rússia e China“, 18 de janeiro de 2022.

4. “Washington e Londres, surdos“, 01 de fevereiro de 2022.

5. “Washington e Londres tentam preservar sua dominação sobre a Europa“, 08 de fevereiro de 2022.

6. “Duas interpretações do caso ucraniano”, 16 de fevereiro de 2022.

7. “Washington soa o alarme, enquanto seus aliados se retiram”, 22 de fevereiro de 2022.

8. “A Rússia declara guerra aos straussianos”, Thierry Meyssan, Rede Voltaire , 05 de março de 2022.

9. “Um bando de viciados em drogas e neonazistas”, 05 de março de 2022.

10 “Israel atordoado pelos neonazistas ucranianos”, 08 de março de 2022.

11. “Ucrânia: a grande manipulação“, 22 de março de 2022.

12. “A Nova Ordem Mundial sendo preparada sob o pretexto de guerra na Ucrânia“, 29 de março de 2022.

13. “A propaganda de guerra muda de forma”, 05 de abril de 2022.

14. “A aliança do MI6, a CIA e os banderitas“, 12 de abril de 2022.

15. “O fim da dominação ocidental“, 19 de abril de 2022.

16. “Ucrânia: a Segunda Guerra Mundial nunca terminou“, 26 de abril de 2022.

17. “Washington espera restaurar seu hiperpoder através da guerra na Ucrânia” 03 de maio de 2022.

18. “Canadá e os banderitas“, 10 de maio de 2022.

19. “Nova guerra se formando para pós-derrota contra a Rússia“, 24 de maio de 2022.

20. “Programas militares secretos ucranianos“, 31 de maio de 2022.

21. “Ucrânia: mal-entendidos, mal-entendidos e mal-entendidos“, 07 de junho de 2022.

22. “Polônia e Ucrânia“, 14 de junho de 2022,

23. “A ideologia do banditismo ucraniano“, 21 de junho de 2022.

24. “A fuga da paz na Europa“, 28 de junho de 2022.

Como Roma, o império anglo-saxão está em colapso devido à sua própria decadência.

A cúpula do G7 na Baviera e a cúpula da OTAN em Madri deveriam anunciar a punição do Ocidente ao Kremlin por sua “operação militar especial na Ucrânia”. Mas, se a imagem dada era a da unidade ocidental, a realidade atesta sua desconexão com a realidade, sua perda de influência no mundo e, finalmente, o fim de sua supremacia.

Enquanto o Ocidente está convencido de que o que está em jogo encontra-se na Ucrânia, o mundo a vê diante da “armadilha de Tucídides” [1]. As relações internacionais continuarão organizadas em torno deles ou se tornarão multipolares? Os povos até agora subjugados se libertarão e ganharão soberania? Será possível pensar diferentemente do que em termos de dominação global e dedicar-se ao desenvolvimento de cada indivíduo?

O Ocidente elaborou uma narrativa da “operação militar especial” russa na Ucrânia que ignora suas próprias ações desde a dissolução da União Soviética. Eles esqueceram a assinatura da Carta para a Segurança Europeia (também conhecida como Declaração de Istambul da OSCE – Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) e a forma como a violaram, fazendo com que quase todos os antigos membros do Pacto de Varsóvia e alguns dos novos Estados pós-soviéticos se juntassem um a um. Eles esqueceram a maneira como mudaram o governo ucraniano em 2004 e o golpe de Estado pelo qual colocaram os nacionalistas banderistas no poder em Kiev em 2014. Tendo feito uma varredura do passado, eles culpam a Rússia por todos os males. Eles se recusam a questionar suas próprias ações e consideram que, na época, foram forçados ao poder. Para eles, suas vitórias fazem a Lei.

Para preservar essa narrativa imaginária, eles já silenciaram a mídia russa em casa.

Não importa o quanto eles afirmem ser “democratas”, é melhor censurar vozes dissidentes antes de mentir.

Assim, eles abordam o conflito ucraniano, sem contradição, convencendo-se de que têm o dever de julgar sozinhos, condenar e sancionar a Rússia. Ao chantagear os pequenos Estados, eles conseguiram obter um texto da Assembleia Geral da ONU que parece provar que eles estão certos. Eles agora planejam desmantelar a Rússia como fizeram na Iugoslávia e tentaram fazer no Iraque, Líbia, Síria e Iêmen (estratégia Rumsfeld/Cebrowski).

Para fazer isso, eles começaram a isolar a Rússia das finanças e do comércio mundial. Eles cortaram seu acesso ao sistema SWIFT e ao Lloyds, impedindo-a de comprar e vender, bem como transferir mercadorias. Eles pensaram que isso causaria seu colapso econômico. De fato, em 27 de junho de 2022, a Rússia não conseguiu pagar uma dívida de US$ 100 milhões e a agência de classificação Mody’s a declarou inadimplente [2].

Mas isso não teve o efeito desejado: todos sabem que as reservas do Banco Central russo estão cheias de moeda estrangeira e ouro. O Kremlin pagou os 100 milhões, mas não pôde transferi-los para o Ocidente por causa das sanções ocidentais. Colocou-os em uma conta de garantia onde aguardam seus devedores.

Enquanto isso, o Kremlin, que não é mais pago pelo Ocidente, começou a vender sua produção, especialmente seus hidrocarbonetos, para outros compradores, sobretudo a China. As trocas que não podem mais ser feitas em dólares são feitas em outras moedas. Como resultado, os dólares que seus clientes costumavam usar estão voltando para os Estados Unidos. Esse processo já havia começado há vários anos. Mas as sanções unilaterais ocidentais o aceleraram drasticamente. A enorme quantidade de dólares acumulada nos EUA está causando um aumento maciço de preços. O Federal Reserve está fazendo todo o possível para compartilhá-lo com a zona do euro. O aumento de preços está se espalhando em alta velocidade por todo o continente europeu ocidental.

A cúpula da OTAN em Madri foi uma demonstração de unidade e poder. Mas seus Estados membros foram convocados a assinar o que Washington e Londres decidiram por eles. A união deles foi apenas uma forma de servidão da qual muitos pensavam em se libertar.

O Banco Central Europeu não é uma agência de desenvolvimento econômico. A sua principal tarefa é gerir a inflação na União [Europeia]. Ele não consegue de modo algum desacelerar o aumento repentino dos preços, por isso tenta usá-lo para reduzir sua dívida. Os Estados-Membros da União são, portanto, convidados a compensar a diminuição do poder de compra dos seus “cidadãos” reduzindo os impostos e proporcionando benefícios. Mas este é um círculo sem fim: ajudando seus cidadãos, eles amarram suas mãos e pés ao Banco Central Europeu; eles se acorrentam um pouco mais às dívidas dos EUA e ficam ainda mais pobres.

Não há remédio para essa inflação. Esta é a primeira vez que o Ocidente teve que limpar os dólares que Washington imprimiu de forma imprudente durante anos. O aumento dos preços no Ocidente corresponde ao custo dos gastos imperiais nos últimos trinta anos. Hoje, e somente hoje, o Ocidente está pagando por suas guerras na Iugoslávia, Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e Iêmen.

Até agora, os Estados Unidos matavam qualquer um que ameaçasse a supremacia do dólar. Enforcou o presidente Saddam Hussein por recusar e saqueou o Banco Central do Iraque. Eles torturaram e lincharam o líder Muamar el-Gaddafi que estava preparando uma nova moeda pan-africana e saquearam o Banco Central da Líbia. As somas gigantescas acumuladas por esses Estados petrolíferos desapareceram sem deixar vestígios. A única coisa que vimos foi o soldado americano levando dezenas de bilhões de dólares embrulhados em grandes sacos de lixo. Ao excluir a Rússia do comércio do dólar, o próprio Washington efetuou o que tanto temia: o dólar não é mais a moeda de referência internacional.

A maioria do resto do mundo não é cega. Ela entendeu o que está acontecendo e correu para o Fórum Econômico de São Petersburgo, então tentou se registrar para a cúpula virtual do BRICS. Eles percebem – um pouco tarde – que a Rússia lançou a “Parceria da Grande Eurásia”, em 2016 e que seu ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, a anunciou solenemente na Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2018 [3]. Durante quatro anos, muitas estradas e ferrovias foram construídas para integrar a Rússia nas redes das novas “Rotas da Seda”, terrestres e marítimas, imaginadas pela China. Assim, foi possível deslocar o fluxo de mercadorias em poucos meses.

A queda do valor do dólar e a mudança no fluxo de mercadorias estão causando um aumento ainda maior nos preços da energia. A Rússia, que é um dos maiores exportadores mundiais de hidrocarbonetos, viu suas receitas aumentarem consideravelmente. Sua moeda, o rublo, nunca esteve em melhor forma. Em resposta, o G7 estabeleceu um teto de preço para o petróleo e o gás russos. Ordenou à “comunidade internacional” que não pagasse mais.

Mas a Rússia obviamente não vai deixar o Ocidente definir os preços de seus produtos. Quem não quiser pagar os preços de mercado não poderá comprá-los, e nenhum cliente pretende ficar sem para agradar ao Ocidente.

O G7 tenta organizar, pelo menos intelectualmente, sua supremacia [4]. Isso não funciona mais. O vento mudou. Os quatro séculos de dominação ocidental acabaram.

Em desespero, o G7 comprometeu-se a resolver a crise alimentar global que suas políticas causaram. Os países envolvidos sabem o que significam os compromissos do G7. Eles ainda estão esperando o grande plano de desenvolvimento africano e outros jogos de fumaça e espelhos. Eles sabem que o Ocidente não pode produzir fertilizantes nitrogenados e que impedem a Rússia de vender os seus. A ajuda do G7 é apenas um band-aid para mantê-los esperando e não para questionar os princípios sagrados do livre comércio.

A única opção possível para o resgate da dominação ocidental é a guerra. A OTAN precisa ter sucesso em destruir a Rússia militarmente como Roma uma vez arrasou Cartago. Mas é tarde demais: o exército russo conta com armas muito mais sofisticadas do que o Ocidente. Já experimentou com elas desde 2014 na Síria. E pode esmagar seus inimigos a qualquer momento. O presidente Vladimir Putin expôs o progresso impressionante de seu arsenal a seus parlamentares em 2018 [5].

A Cúpula da OTAN em Madrid foi uma bela operação de comunicação [6]. Mas era apenas um canto de cisne. Os 32 Estados membros proclamaram sua unidade com o desespero daqueles que temem morrer. Como se nada tivesse acontecido, eles primeiro adotaram uma estratégia para dominar o mundo pelos próximos dez anos, nomeando como preocupação o “crescimento” da China [7]. Ao fazê-lo, eles admitiram que seu objetivo não é garantir sua própria segurança, mas dominar o mundo. Abriram então o processo de adesão da Suécia e da Finlândia e consideraram abordar a China com, como primeiro passo, a possível adesão do Japão.

O único incidente, rapidamente controlado, foi a pressão turca que obrigou a Finlândia e a Suécia a condenar o PKK [8]. Incapaz de resistir, os Estados Unidos abandonaram seus aliados, os mercenários curdos na Síria e seus líderes no exterior.

Com isso, eles decidiram aumentar a Força de Reação Rápida da OTAN de 40.000 para 300.000 homens, 7,5 vezes, e estacioná-la na fronteira russa. Ao fazê-lo, violaram mais uma vez a sua própria assinatura, a da Carta para a Segurança na Europa, ao ameaçarem diretamente a Rússia. A Rússia não tem possibilidade de defender suas enormes fronteiras e só pode garantir sua segurança garantindo que nenhuma força estrangeira estabeleça uma base militar em suas fronteiras (estratégia da terra arrasada). O Pentágono já está circulando mapas prospectivos do desmantelamento da Rússia que espera implementar.

O ex-embaixador da Rússia na OTAN e atual diretor da Roscosmos, Dmitry Rogozin, respondeu publicando em sua conta do Telegram as coordenadas dos centros decisórios da OTAN, incluindo a sala de cúpula de Madri [9]. A Rússia tem lançadores hipersônicos, no momento impossíveis de interceptar, que podem transportar uma ogiva nuclear em poucos minutos até à sede da OTAN em Bruxelas e ao Pentágono em Washington. Para evitar qualquer mal-entendido, Sergei Lavrov especificou, aludindo aos straussianos, que as decisões marciais do Ocidente não foram tomadas pelos militares, mas pelo Departamento de Estado dos EUA. Seria [esse] o primeiro alvo.

Então, a pergunta é: o Ocidente vai jogar por tudo o que vale? Correrão o risco de uma Terceira Guerra Mundial, mesmo já perdida, só para não morrer sozinho?

Tradução do francês para o inglês por Roger Lagassé.

Tradução do inglês para o português por Lady Bharani.

Notas:

[1] Destined For War: Can America and China escape Thucydides’s Trap?, Graham T. Allison, Houghton Mifflin Harcourt (2017).

[2] “Government of Russia: Missed coupon payment constitutes a default”, Moody’s, June 27, 2022.

[3] “Comentários de Sergey Lavrov à 73ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas”, de Sergey Lavrov, Rede Voltaire, 28 de setembro de 2018. “UNO: birth of the post-Western world”, de Thierry Meyssan, Tradução Pete Kimberley, Rede Voltaire, 02 de outubro de 2018.

[4] “Communiqué des chefs d’Etat et de gouvernement du G7 d’Elmau”, Réseau Voltaire, 28 de junho de 2022.

[5] “Discurso de Vladimir Putin à Assembleia Federal Russa” de Vladimir Putin, Rede Voltaire, 01 de março de 2018. “O novo arsenal nuclear russo restaura a bipolaridade mundial”, de Thierry Meyssan, Tradução Pete Kimberley, Rede Voltaire, 06 de março de 2018.

[6] “O que lembrar da Cúpula da OTAN de 2022 em Madrid”, Rede Voltaire, 29 de junho de 2022.

[7] Conceito Estratégico da OTAN 2022.

[8] “Turkiye, Sweden, Finland Memorandum”, Rede Voltaire, 28 de junho de 2022.

[9] “A Rússia ameaça os centros de decisão ocidentais”, Rede Voltaire, 29 de junho de 2022.


Fonte: https://www.voltairenet.org/article217555.html

One Comment

  1. Carlos Alberto said:

    Artigo primoroso e esclarecedor de Thierry Meyssan, que desenha o quadro geopolítico das tensões Rússia/EUA-OTAN com precisão cirúrgica; tanto do ponto de vista das operações do Ocidente para reverter as consequências das sanções contra a Rússia, que voltaram como bumerangue para os países da União Europeia (inflação/desemprego/desequilíbrio social), quanto das perspectivas estratégicas no cenário político e militar do conflito.

    4 September, 2022
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