A linguagem da educação neoliberal . O neoliberalismo é a nova face do fascismo.

25/12/2018, Henry Giroux – Mitja Sardoč, Counterpunch

“Vou contar um segredo para vocês:
administrar o governo federal é como administrar a sua casa.”

Henrique Meirelles
(“Um Banqueiro em Campanha”, Isto É Dinheiro, 12/2/2016)[NTs].
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“O neoliberalismo autodefiniu-se como uma modalidade de ‘senso comum’ e funciona como modalidade de pedagogia ‘pública’ que produz um modelo pelo qual os neoliberais tentam estruturar não só os mercados, mas toda a vida social. Nesse sentido, funcionou e continua a funcionar, e não só pela educação pública e universitária, para produzir e distribuir valores ‘de mercado’, identidades ‘de mercado’ e modos de associação e agenciamento ‘de mercado’, mas, também mediante aparelhos e plataformas culturais mais amplas, para privatizar, desregular, economicizar e submeter todas as instituições e relações que regem a vida diária, aos interesses da privatização, da eficiência, da desregulação e da conversão de tudo e todos ao estado de mercadoria.” […]

“Sob modos neoliberais de governança, em seja qual for a instituição, todas as relações sociais são reduzidas a um ato de comércio” […] (Henry Giroux, adiante).
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Aqui, Henry Giroux é entrevistado por Mitja Sardoč, professor do Instituto de Pesquisas de Educação, na Faculdade de Ciências Sociais, na Universidade de Ljubljana, Eslovênia.

Mitja Sardoč: Por várias décadas, o neoliberalismo tem aparecido na linha de frente de discussões, não só de economia e finanças, mas infiltrou-se também no nosso vocabulário de inúmeras outras áreas, como estudos da governança, criminologia, atenção à saúde, jurisprudência, educação, etc. O que disparou o uso e a aplicação dessa ideologia economicista, associada à métrica de ‘resultados’, efetividade e eficiência?

Henry Giroux: O neoliberalismo tornou-se a ideologia dominante dos nossos dias e autoestabeleceu-se como traço central da vida política. Não se autodefine só como sistema político e econômico, cujo objetivo é consolidar o poder em mãos da elite empresarial e financeira; também disputa espaço na guerra de ideias.

Nesse campo, o neoliberalismo autodefiniu-se como uma modalidade de ‘senso comum’ e funciona como modalidade de pedagogia ‘pública’ que produz um modelo pelo qual os neoliberais tentam estruturar não só os mercados, mas toda a vida social. Nesse sentido, funcionou e continua a funcionar, não só pela educação pública e universitária, para produzir e distribuir valores ‘de mercado’, identidades ‘de mercado’ e modos de associação e agenciamento ‘de mercado’, mas, também em aparelhos e plataformas culturais mais amplas, para privatizar, desregular, economicizar e submeter todas as instituições e relações que regem a vida diária, aos interesses da privatização, da eficiência, da desregulação e da conversão de tudo e todos ao estado de mercadoria.

Desde os anos 1970s, com mais e mais instituições regentes da sociedade sendo invadidas pela ideologia neoliberal, a respectiva noção de senso comum – o mais brutal individualismo, competição feroz, ataque violento e agressivo contra o estado do bem-estar, evisceração da propriedade pública, e o ataque neoliberal contra todas as formas de socialidade que não promovam o mercado e a mercadoria – converteu-se no senso comum não contestado das sociedades capitalistas.

O que muitos na esquerda estão deixando passar sem ver é que o neoliberalismo tem a ver com mais do que estruturas econômicas; que é também uma poderosa força pedagógica – especialmente em tempos de mídias ditas ‘sociais’ –, que trabalha a favor da dominação de pleno espectro em todos os níveis da vida social dos cidadãos. Seu alcance cobre não só a educação, mas também um conjunto vastíssimo de plataformas digitais e toda a esfera mais ampla da cultura popular. Sob modos neoliberais de governança, seja qual for a instituição, todas as relações sociais são reduzidas a um ato de comércio.

A promoção neoliberal da efetividade e da eficiência empresta credibilidade à autoproclamada predisposição que teriam os neoliberais para dar à educação o lugar central da política, e ao sucesso desse projeto. Também serve como ‘aviso’ aos progressistas. Pierre Bourdieu insiste em que a esquerda subestimou as dimensões simbólicas e pedagógicas da luta e não forjou armas adequadas para combater os neoliberais nesse duplo front.

Mitja Sardoč: Segundo defensores do neoliberalismo, a educação representaria um dos principais indicadores de futuros crescimento econômico e bem-estar individual. Como – e por quê – a educação ascendeu ao posto de um dos elementos centrais da ‘revolução neoliberal’?

Henry Giroux: Defensores do neoliberalismo sempre reconheceram que a educação é locus de luta, de apostas altíssimas, em torno de como são educados os jovens, quem deve receber educação, e que visão de presente e futuro deve ser mais valorizada, privilegiada e reforçada. Nos anos 1960s, a educação superior passou por período revolucionário nos EUA e em muitos outros países, com estudantes buscando redefinir a educação como item da esfera pública democrática e, ao mesmo tempo abri-la para vários grupos que até ali haviam sido excluídos. Os conservadores assustaram-se com essa mudança e fizeram tudo que podiam para impedir que prosperasse. Prova disso aparece bem clara na produção do Powell Memo publicado em 1971 e, adiante, do relatório, praticamente um livro, da Comissão Trilateral [ing. The Trilateral Commission], intitulado The Crisis of Democracy, publicado em 1975.

A partir dos anos 1960s, conservadores, especialmente a direita neoliberal, fez guerra total à educação, para esterilizá-la, tirar dela seu papel potencial como uma das esferas públicas democráticas. Ao mesmo tempo, buscaram agressivamente reestruturar seus modos de governança; reduzir o poder dos estudos superiores nas chamadas Ciências Humanas; privilegiar saberes que fossem instrumentais para o mercado; definir os alunos principalmente como clientes e consumidores; e reduzir a função da educação superior a, praticamente, garantir treinamento aos jovens para se integrarem a força de trabalho global. No centro do investimento neoliberal em educação está um desejo de minar o compromisso da universidade com a verdade, com o pensamento crítico, e sua obrigação de defender a justiça e assumir a responsabilidade pela defesa dos interesses dos mais jovens que entram num mundo de desigualdades massiva, exclusão e violência no país onde vivem e em todo mundo. A educação superior talvez seja uma das poucas instituições que restam nas sociedades neoliberais, que ainda oferecem espaço mais ou menos protegido para questionar, contestar e pensar a contrapelo. Os neoliberais consideram esse espaço perigoso, e têm feito todo o possível para eliminar a educação superior como espaço no qual os jovens adultos possam realizar-se como cidadãos críticos, as escolas e faculdades possam participar na estrutura do governo, e a educação possa autodefinir-se como direito, não como privilégio.

Mitja Sardoč: Quase por definição, reformas e outras iniciativas que visem a melhorar a prática educacional têm sido mecanismos chaves para injetar na educação a agenda neoliberal de efetividade e eficiência. Que aspecto do neoliberalismo e de sua agenda educacional você acha mais problemático? Por quê?

Henry Giroux: Cada vez mais alinhada com forças do mercado, a educação superior hoje está dedicada a ensinar princípios negociais e valores empresariais, da iniciativa privada, e administradores de universidades são gerentões bem-sucedidos ou burocratas, numa cultura neoliberal de auditagem [ing. audit culture[1]]. Muitos colegas e universidades foram McDonaldizadas, com o conhecimento visto cada vez mais como mercadoria, o que resulta em currículos que se assemelham a menus de fast-food.

Além disso, as faculdades são sujeitas cada vez mais a um modelo Wal-Mart de relações de trabalho, concebidas para, como diz Noam Chomsky, “reduzir os custos do trabalho e aumentar o servilismo no trabalho”. Na era da precariedade e da flexibilidade, a maioria dos professores das faculdades foram reduzidos a empregos de tempo parcial, salários achatados, controle nenhum sobre as condições de trabalho, benefícios reduzidos ou cortados, e medo de discutir questões sociais críticas na sala de aula, por medo de perder o emprego.

O medo de perder o emprego pode ser a questão central na supressão da livre manifestação do pensamento e da autonomia acadêmica nas academias. Mais que isso, muitos desses professores das faculdades mal conseguem chegar ao fim do mês, efeito dos salários achatados, e muitos já comem em restaurantes públicos, para desempregados e subempregados. Se os professores são tratados como trabalhadores braçais e prestadores de serviços, os alunos não estão muito melhor, relegados agora ao status degradado de consumidor e cliente na maioria dos casos sem direito algum.

Pior de tudo, são não apenas sufocados com os valores da competição, da privatização, supostos valores ‘do mercado’ típicos do neoliberalismo, mas, também são castigados por aqueles mesmos valores, sob a forma de taxas exorbitantes para obter orientação, dívidas astronômicas com bancos e outras instituições financeiras, e em muitos casos, sem qualquer chance de obter emprego decente.

Como projeto e como movimento, o neoliberalismo mina a capacidade de educadores e outros ligados à educação, para criar as condições que garantam aos alunos real possibilidade de obter o conhecimento e a coragem civil necessários para vencer a desolação, o pessimismo e o cinismo, e alcançar esperanças realistas viáveis.

Como ideologia, o neoliberalismo opõe-se diretamente a qualquer noção prestável de democracia, que os neoliberais veem como inimigo figadal do ‘mercado’. De fato, nenhuma democracia será jamais prestável, se os cidadãos não são autônomos, se não têm critérios pessoais de análise e avaliação, se não têm curiosidade, se são incapazes de concentrar-se e produzir pensamento independente, que não seja repetição irrefletida – qualidades que são indispensáveis para estudantes que aspirem a avaliar, julgar e escolher o tipo de participação que desejam ter no mundo, e de formatar decisões que afetam a vida diária, as reformas em geral e as políticas de estado.

Mitja Sardoč: Por que esses processos de ‘avaliação’ em grande escala, que só consideram dados quantitativos em geral, são parte tão central da ‘caixa de ferramentas’ neoliberal para pesquisas sobre educação?

Henry Giroux: São as ferramentas da contabilidade de bancos, nada têm a ver com visões mais amplas do mundo ou com buscar conhecer e avaliar o que realmente faz diferença qualitativa, na avaliação de uma formação universitária. Um descabida confiança acrítica na métrica e na mensuração passou a ser ferramenta para apagar todas as questões da responsabilidade, moralidade e justiça, da linguagem e das políticas para a educação.

Para mim, a caixa de ferramentas neoliberais que se vê em operação é parte do discurso do analfabetismo civil que cresce exponencialmente na pesquisa em nível acadêmica, uma espécie de investimento pervertido em números e métrica, que mata a imaginação e ataca todos os pontos onde possa haver crítica, dedicação, atenção ao próximo e coragem para correr riscos. O culto da mensurabilidade a serviço da cultura da auditagem tornou-se a nova cara de uma cultura positivista, uma espécie de panóptico empiricista que converte ideias em números, e o impulso criativo, em cinzas.

Avaliações em larga escala e dados quantitativos são o mecanismo central no qual tudo é absorvido na cultura do business.

A distinção entre informação e conhecimento tornou-se irrelevante nesse modelo, e qualquer coisa que não se deixe reduzir a números é tratada com desdém. Nesse novo panóptico da auditagem, o único conhecimento prestigiado é o que possa ser mensurado. O que some aqui, claro, é que essa utilidade mensurável é uma maldição, como princípio universal, porque ignora todos os tipos de conhecimentos baseados no pressuposto de que os indivíduos precisam saber mais do que como as máquinas funcionam ou qual seja a utilidade prática de qualquer saber.

Essa linguagem é incapaz de responder à pergunta sobre qual é a responsabilidade da universidade e dos educadores em tempos de tirania, quando o ser humano vê-se diante do horror indizível, do que não consegue dizer em palavras – como no atual ataque aos imigrantes, aos muçulmanos e a outros seres humanos considerados descartáveis. É uma linguagem que ao mesmo tempo tem medo e não tem qualquer desejo de imaginar que mundos alternativos inspirados pela busca por igualdade e justiça seriam possíveis em tempos já cercados por forças cada vez mais obscuras do autoritarismo.

Mitja Sardoč: É verdade que a análise da agenda neoliberal para a educação é bem documentada, mas a análise da linguagem da educação neoliberal ainda vive distante do interesse das grandes escolas e seus pesquisadores. De modo especial, a disseminação do vocabulário neoliberal, que muito fala de igualdade de oportunidades, de justiça, bem-estar etc. não tem sido estudada com a atenção necessária. Que fatores contribuíram para essa mudança de ênfase?

Henry Giroux: O neoliberalismo potencializou o modo como a linguagem é usada tanto na educação quanto na sociedade em geral. O neoliberalismo obra para se apropriar dos discursos associados à democracia liberal que já foram normalizados, para limitar seus significados e usá-los para significar o oposto do que eles significaram tradicionalmente, especialmente com relação aos direitos humanos, justiça, julgamento informado, ação-militância crítica e democracia em si. Está em curso uma guerra, não só em torno das estruturas econômicas, mas também se disputam a memória, as palavras, os significados e a própria vida política.

O neoliberalismo toma palavras como liberdade e ‘reduz’ o significado a liberdade para consumir, cospe ódio e celebra noções de autointeresse e o mais pervertido individualismo, como se isso fosse ‘senso comum’. “Igualdade de oportunidades” significa mergulhar na competição mais feroz, uma guerra de todos contra todos, contra qualquer ética ou moralidade, e um modo de comportamento que cultua a sobrevivência do mais forte.

O vocabulário do neoliberalismo opera a serviço da violência, dado que reduz a capacidade de realização humana em sentido coletivo, diminui, no sentido de reduz qualquer compreensão mais ampla da liberdade como fundamental para expandir a capacidade humana de atuar, e diminui a imaginação ética, porque a reduz ao interesse do mercado e da acumulação de capital. Palavras, memória, linguagem e significações são bombardeadas, detonadas pelos ‘pensadores’ e ativistas do neoliberalismo.

Sem dúvida, nem a mídia-empresa nem os progressistas deram suficiente atenção à violência com que o neoliberalismo coloniza a linguagem, porque nenhum desses agentes deram suficiente atenção à crise do neoliberalismo, não só como crise econômica, mas também como crise de ideias, crise do pensamento.

A educação, no paradigma neoliberal deixou de ser vista como força central da política e ponto de intersecção de linguagem, poder e política. Mais que isso: em tempos em que a cultura civil está sendo erradicada, as esferas públicas esvaem-se e noções de cidadania partilhada parecem obsoletas, palavras que dizem a verdade, revelam injustiças e oferecem análise crítica bem informada também já começam a desaparecer. Nesse quadro, é cada vez mais difícil atacar criticamente o que o liberalismo dá à colonização da linguagem.

Nos EUA, os prodigiosos tuítos de Trump significam não só um tempo em que governos também já se engajaram na patologia dos boatos e mentiras infindáveis; aqueles tuítos também operam para reforçar uma pedagogia do infantilismo concebida para animar ‘as bases’ numa espécie de choque, ao mesmo tempo em que reforçam uma cultura de guerra, medo, divisionismo e ganância que desarma qualquer crítico.

Mitja Sardoč: Você escreveu extensamente sobre a visão exclusivamente instrumental que o neoliberalismo tem da educação, a compreensão reducionista da eficácia e a imagem distorcida que os neoliberais tem do que seja igualdade justa. De que modo uma pedagogia radical pode combater contra o neoliberalismo e sua agenda educacional?

Henry Giroux: Primeiro, a educação universitária precisa conseguir reafirmar a própria missão como bem público, para exigir o direito para si os próprios impulsos igualitaristas e democráticos. Educadores precisam iniciar e expandir um diálogo nacional no qual a formação de especialistas nas universidades possa ser defendida como uma esfera pública democrática e a sala de aulas como locus para investigação, diálogo e pensamento crítico deliberativo, colégio que reivindica para si a imaginação radical e um sentido de coragem cívica.

Ao mesmo tempo, o discurso no qual se defina a educação universitária como esfera pública democrática pode servir como plataforma para um compromisso mais expressivo com desenvolver um movimento social em defesa do patrimônio público; e contra o neoliberalismo definido como ameaça contra a democracia.

Significa também repensar o modo como a educação pode ser financiada como patrimônio público. Esse repensar deve significar combater por políticas que, simultaneamente, ponham fim aos cortes de recursos públicos para a educação, e realocar fundos hoje empenhados na máquina militar de matar e encarcerar, para usá-los no apoio à educação em todos os níveis da sociedade.

Aqui se trata de a educação universitária não abandonar o compromisso com a democracia e reconhecer que o neoliberalismo opera a serviço das forças da dominação econômica e da repressão ao pensamento independente [no Brasil chamada estranhamente e assumidamente de repressão às “ideologias”].

Por uma “gramática de uma imaginação ética e social”

Segundo, os educadores precisam assumir e dar-lhe bom uso, à noção de que cidadãos alfabetizados para a crítica são absolutamente indispensáveis em qualquer democracia, especialmente num momento em que a educação universitária está sendo privatizada e submetida aos esforços da restruturação neoliberal.

Aqui se trata de pôr a ética, a educação cívica, a responsabilidade social e a solidariedade e compaixão, na linha de frente do ensino-aprendizagem, de modo a combinar conhecimento, ensino-aprendizagem e pesquisa com os rudimentos do que se pode chamar de gramática de uma imaginação ética e social.

Implica levar efetivamente a sério aqueles valores, tradições, histórias e pedagogias que promovam, no coração de uma democracia real, um senso de dignidade, autorreflexão e solidariedade e compaixão.

Terceiro, a educação universitária tem de ser vista como direito, como ainda é no Brasil, Alemanha, França, Noruega e Finlândia, não como privilégio para poucos, como é nos EUA, Canadá e Reino Unido. Quarto, em mundo movido a dados, números, porcentagens, e o conhecimento vai sendo trocado por superabundância intoxicante de informação, os educadores têm de capacitar os alunos para várias e diferentes alfabetizações, que vão da alfabetização para leitura de texto, à alfabetização para leitura visual e alfabetização para a cultura digital.

Os alunos têm de ser capacitados para ultrapassar fronteiras, têm de saber pensar dialeticamente, e aprender não apenas a consumir cultura mas também a produzir cultura.

Quinto, as escolas universitárias têm de reivindicar e defender o direito de controlar a natureza do próprio trabalho, de ter voz na modelagem de políticas de Estado e governo, de ter seus empregos protegidos em termos da liberdade de pensamento e manifestação.

Mitja Sardoč: Por que é importante analisar o relacionamento entre neoliberalismo e alfabetização civil para a democracia como projeto educacional?

Henry Giroux: A hegemonização pelo neoliberalismo, na política dos EUA, tornou visível um analfabetismo profundo na sociedade, para a vida democrática, ativo como doença endêmica mortífera, o descaso contra a racionalidade, que foi construído durante décadas. Também aponta o enfraquecimento dos elos cívicos, o desfazimento da cultura cívica, civil, o declínio da vida pública e a erosão de qualquer noção de cidadania partilhada.

Conforme as mentalidades e moralidades ‘de mercado’ vão apertando as garras sobre todos os aspectos da sociedade, as instituições democráticas e esferas públicas vão sendo reduzidas, se não completamente excluídas. Ao ritmo em que essas instituições vão sendo extintas – de escolas públicas a mídia alternativas e centros públicos de atendimento à saúde – há também grave erosão do discurso de comunidade, justiça, igualdade, valores públicos e o bem comum.

Ao mesmo tempo, razão e verdade não são sequer questionadas como teriam de ser, nem os assuntos ou argumentos bem informados, mas atacados com fúria e demonizados – completamente banidos do mundo envenenado do jornalismo de notícias forjadas. Por exemplo, a linguagem pública está sob ataque, verdade e razão são atropeladas (de fato, desde Bush, Obama, hoje com Trump) e palavras e frases são esvaziadas de qualquer substância ou invertidas até se converterem no inverso, tudo isso empurrado por tempestades de tuítos de autoridades no poder, ou no espetáculo dos torsos falantes de redes comerciais de circo, como Fox News.

Essa sombria realidade indica um fracasso no poder da imaginação civil cívica, da vontade política e da democracia aberta. É parte também de uma política que despe o mundo social de quaisquer ideais democráticos e mina qualquer esforço para compreender a educação como bem público.

Hoje, sob o neoliberalismo não assistimos apenas a um simples projeto político que se consolida em mãos da elite livre-empresarial e financeira, mas, também, a uma ativa reformatação do próprio significado do que seja alfabetização e educação, reformatação que aquela elite considera crucialmente importante para bloquear a formação de cidadania bem-informada e de qualquer sociedade efetivamente democrática.

Em tempos em que a alfabetização, o letramento e o pensamento criativo tornam-se perigosos para as forças antidemocráticas que governam todas as instituições econômicas e culturais dos EUA [muito mais, sim, no Brasil-2018 do governo golpista de Bolsonaro (NTs)], a verdade passou a ser vista como ‘ameaça à segurança’; a ignorância, como virtude e o pensamento crítico é demonizado e tratado como lixo e cinzas.

Sob o reinado dessa arquitetura ‘normalizada’ de falso bom-sensismo, a alfabetização e o letramento são vistos com desdém, as palavras são reduzidos a dados e a ciência é misturada à pseudociência. Cada vez mais só se veem traços de pensamento crítico empurrado para áreas marginais e não hegemônicas da cultura. E a ignorância torna-se o princípio fundamental em torno do qual se organiza a vida da sociedade nos EUA [muito mais, sim, no Brasil-2018 do governo golpista de Bolsonaro (NTs)].

Nesses 40 anos de reinado do neoliberalismo, a linguagem foi militarizada, entregue a publicitários e anunciantes, todo o jogo dá destaque à estupidez e à ignorância, e reina um anti-intelectualismo culturalmente vergonhoso sancionado pelo poder eleito não raro mediante fraude. Some a isso uma cultura das ‘celebridades’ que produz sem próprio ecossistema de entretenimento idiotizante, de choque pelo mau gosto e pela violência.

E acrescente também a figura de intelectuais públicos apalhaçados, ou de fantoches imbecilizados fazendo as vezes de intelectuais públicos, quando não visivelmente perturbados e/ou pervertidos, a propagandear formas infantiloides de masculinidade ou de ‘fazer justiça’, e que definem a mentalidade e a violenta estupidez do provocador covarde como se fossem eventos da natureza, ao mesmo tempo em que vão atropelando qualquer senso exequível de ação social e de trabalho político de esclarecimento com ambição civilizatória.

A cultura do analfabetismo construído também é reproduzida por um aparelho ‘midiático’ que vive do comércio de fantasias e ilusões, e de vender violência.

Nessas circunstâncias, o analfabetismo social e político torna-se a regra, e a educação passa a existir como eixo em torno do qual gira uma versão de política-zumbi neoliberal, cuja principal serventia a favor do poder neoliberal é que destrói e exclui da ideologia social, das políticas e das instituições que agora controlam as instituições nos EUA e em todo o hemisfério dependente dos EUA.

Na era do analfabetismo construído, há muito mais em operação que simplesmente o cancelamento do ensino-aprendizagem produtivo, de ideias e de conhecimento. Nem a imposição crescente do reinado desse analfabetismo construído pode ser atribuída só ao crescimento das novas chamadas ‘mídias sociais’, à cultura do ganho imediato e da gratificação instantânea.

Ao contrário, o analfabetismo construído é projeto político e educacional central para um conjunto de políticas e para a propagação do ideário livre-empresarial de direita, projeto que opera agressivamente para despolitizar os cidadãos e torná-los cúmplices das forças econômicas controladas por agentes neoliberais e racistas que impõem a miséria e o mais terrível sofrimento a milhões de pessoas.

Há mais em operação aqui do que o que Ariel Dorfman chama de “estupidez criminosa”: aqui opera também uma forma profundamente virulenta de fascismo neoliberal do século 21 e uma cultura da crueldade, na qual a linguagem é injetada a serviço de cada vez mais violência, ao mesmo tempo em que ataque sem cessar a imaginação moral e ética e a noção de bem social comum.

No momento histórico que vivemos, o analfabetismo social e político e a ignorância oferecem um simulacro de sociedade na qual já praticamente ninguém, ou poucos, veem a importância do letramento cívico civil tanto na educação universitária, que forma especialistas, quanto na sociedade em geral.

Mitja Sardoč: Há algum ponto ou aspecto da agenda educacional neoliberal à qual os críticos tenham dado menos atenção que a necessária?

Henry Giroux: Qualquer análise que se tente, de uma ideologia como o neoliberalismo, sempre será incompleta. E a literatura sobre o neoliberalismo em suas diferentes formas e contextos é abundante.

Para mim, três coisas são sempre subestimadas, ou insuficientemente analisadas. Primeira, fala-se muito pouco de como o neoliberalismo funciona, não apenas como modelo econômico para o capital financeiro, mas como pedagogia pública que ‘atua’ mediante grande número de sites e plataformas. Segunda, ainda não se escreveu suficientemente sobre a guerra que o neoliberalismo move contra qualquer noção democrática de socialidade e contra o próprio conceito de social.

“Falta explicar às massas como opera o fascismo neoliberal

Terceiro, num momento em que se ouvem ecos cada vez mais claros de um fascismo que supúnhamos que tivesse ficado no passado, pouco se fala sobre a relação que une neoliberalismo e fascismo – o que chamo de fascismo neoliberal. Falo especialmente da relação entre o sofrimento e a miséria que o neoliberalismo espalha por onde passa, e a ascensão do suprematismo branco.

Defino o fascismo neoliberal como, simultaneamente, um projeto e um movimento, que operam como força que se aplica na direção de enfraquecer, quando não de destruir, todas as instituições que organizam uma democracia , minando todos os mais valiosos princípios, sem os quais a dita democracia não é democracia.

Assim, o fascismo neoliberal garante terreno fértil onde semear a arquitetura ideológica, os valores pervertidos e as relações sociais do racismo que são produzidas e sancionadas em regimes fascistas.

O neoliberalismo e o fascismo dão-se as mãos e avançam num projeto-movimento mutuamente compatível e confortável para ambos, no qual se conectam os piores excessos do capitalismo, com os ideais do fascismo: o culto da guerra e da morte, o ódio à razão e à verdade; uma celebração populista de algum ultranacionalismo [no caso do Brasil, os fascistas são ultranacionalistas, mas praticam o ultranacionalismo sionista israelense! (NTs)] e de uma autodeclarada pureza racial dos brancos; supressão das liberdades e do direito de dissentir; promoção cultural de mentiras, calúnias, do ‘espetáculo’ e do espetaculoso, a demonização do diferente, um discurso fracassista pró-redução e contenção; propaganda a favor da violência mais brutal, até o estabelecimento de um estado de violência sob as formas mais heterogêneas.

Como projeto, o fascismo neoliberal destrói todas as instituições essenciais da democracia e consolida o poder nas mãos de uma elite financeira. Como movimento, produz e legitima a desigualdade econômica e o sofrimento humano mais sinistro, privatiza bens públicos, desmantela agências essenciais da governança democrática e individualiza todos os programas sociais. Além disso, transforma o estado político em estado livre-empresarial; e usa as ferramentas da vigilância, da militarização e da ‘lei’ e da ‘ordem’ para desacreditar a mídia-empresa que não seja completamente subserviente à finança, minar as liberdades civis e ridicularizar e censurar todos os críticos.

Falta portanto, na minha opinião, que os críticos assumam, como objeto de estudo e de crítica, a evidência de que o neoliberalismo é a face de um novo fascismo. Assim sendo, falta ensinar aos mais pobres a repudiar a noção de que capitalismo financeiro e democracia seriam uma e a mesma coisa. Falta também ajudar os cidadãos a renovar a fé nas promessas de um socialismo democrático, a criar novas formações políticas em torno de uma aliança de diversos movimentos sociais. E falta que os especialistas levem realmente a sério a necessidade de pôr a educação no centro da própria vida política.*******

[1] De: “Audit culture and Illiberal governance: Universities and the politics of accountability” [Cultura da auditagem e governança não liberal], Cris Shore, 2008 (resumo, aqui traduzido)

“Os imperativos econômicos do neoliberalismo, combinados com as tecnologias da Nova Administração Pública provocaram mudanças profundas na organização dos locais de trabalho em muitas sociedades capitalistas contemporâneas. Práticas de mensuração, incluindo ‘indicadores de desempenho’ e ‘benchmarking’ [tabelas de desempenho comparativo] são cada vez mais usadas para medir e reformar organizações do setor público, e melhorar a produtividade e as condutas de indivíduos em inúmeras profissões. Esses processos resultaram no desenvolvimento de uma cada vez mais penetrante invasiva ‘cultura de auditagem’, que extrai sua legitimidade da ideia de que estaria promovendo a ‘transparência’ e os mecanismos e processos para cobrar e prestar contas [ing. transparency and accountability]. A partir de exemplos do Reino Unido, particularmente da reforma das universidade pós-1990s, esse artigo propõe-se a analisar as origens e a disseminação dessa ‘cultura da auditagem’, e teoriza algumas implicações dela para a construção de subjetividades acadêmicas. As perguntas que faço são: Como essas tecnologias da auditagem estão remodelando o ambiente de trabalho e que efeitos têm elas sobre o comportamento (e a subjetividade) dos acadêmicos? O que a análise da ascensão do gerencialismo [ing. managerialism] nos diz sobre processos históricos mais amplos de poder e mudança em nossa sociedade? E por que os acadêmicos são aparentemente tão cúmplices e tão incapazes de resistir contra esses processos?” [NTs]

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