The Saker: Negabilidade plausível[1] contra adversário que mente sistematicamente


28/6/2016, The Saker, Unz Review e The Vineyard of the Saker

A Internet anda fervendo, com reações contra o mais recente relatório de Stratfor sobre como se desenrolaria um confronto militar entre Rússia e os EUA. Não consegui o texto integral que, suponho, é reservado a assinantes pagantes de Stratfor (e, francamente, tenho melhores usos a dar ao meu tempo e ao meu dinheiro, que assinar aquele lixo). Mas, uma vez que os mesmos trechos foram incansavelmente repetidos em todos os lugares, posso listá-los aqui e assumir que isso é o que interessa (digamos assim), do artigo. Vejam aí (extraído do que Business Insider citou e parafraseando o artigo original):

Embora a Rússia tenha na Síria alguns sistemas avançados de mísseis terra-ar e aeronaves de combate muito ágeis, ela não se dará bem no que seria guerra aérea rápida, brutal, contra os EUA (…) A Rússia tem “cerca de 25 aviões, dos quais apenas dez são dedicados à superioridade aérea (Su-35s e Su-30s), e contra eles terão de encarar aviões de combate de tecnologia stealth de 5ª geração, dúzias de jatos de ataque, F-15s, F-16s, e também bombardeiros B-1 e B-52. E claro toda a vasta Marinha dos EUIA e muitas centenas de Tomahawks.””Os russos têm muitas defesas aéreas; absolutamente não são, de modo nenhum, indefesos” – disse Lamrani a Business Insider, “Mas os EUA têm muito pesada superioridade aérea.” Ainda que as plataformas individuais russas estejam próximas da equivalência, e sob alguns critérios até excedam a capacidade dos jatos dos EUA, tudo se reduz a números. Se a vigilância dos EUA detectar mobilização em massa de jatos russos em resposta ao vai-e-vem, os EUA não esperarão polidamente que os russos ponham seus aviões no céu para revidar. Em vez disso choverá uma tempestade de mísseis cruzadores disparados do grupo de ataque do porta-aviões USS George H. W. Bush, mais ou menos como se viu no ataque de 7 de abril sobre a base aérea síria de Sharyat. Mas dessa vez, os mísseis terão de saturar e derrotar antes os mísseis das defesas aéreas da Rússia, o que os EUA podem fazer amplamente nos grandes números, ou usando equipamento de ataque eletrônico.Em seguida, tendo neutralizado as defesas da Rússia, os navios podem atacar a base aérea e destruir, além dos aviões que estejam em solo, também as pistas de decolagem, sem as quais nenhum avião poderá decolar. Nesse ponto, a aviação dos EUA e da Coalizão terá caminho aberto para entrar e devastar completamente as forças russas.

Terá o autor, Omar Lamrani, acertado na avaliação que fez? Sim e não. Sim, porque aconteceria exatamente isso, se os russos decidissem engajar sua esquadra de pequenos números para impor superioridade aérea e tentar impor-se sobre toda a força aérea do Comando Central dos EUA (CENTCOM) e da OTAN, pelo controle dos céus sírios. E não, simplesmente porque os russos jamais farão tal coisa.

O autor do artigo, civil sem experiência militar, comete um erro básico: ele assume que os russos agirão como perfeitos idiotas e combaterão o tipo de guerra que os EUA tanto gostariam de lhes impor. É o tipo de pressuposto que muitos calouros acolhem, e que ajudam a construir excelentes artigos de propaganda. O problema é, claro, que não há absolutamente razão alguma pela qual os russos aceitem colaborar para cenário tão completamente ridículo. Assim sendo, voltemos ao começo mais básico.

Pergunta 1: Os russos estão em posição de fraqueza na Síria?

Sim, com certeza estão. E sabem disso. Primeiro, os russos estão operando apenas duas instalações construídas (Tartus e Khmeimim); estão longe de casa; e o tamanho de sua força tarefa na Síria é mínimo, se comparada ao gigantesco poder de fogo ao qual têm acesso os anglo-sionistas e aliados. Segundo, os EUA injetaram bilhões de dólares nessa região, para assegurar-se de que a Rússia jamais consiga invadir com sucesso o Irã. E não só têm imensa superioridade numérica sobre os russos: também têm uma rede de bases de primeira classe de onde podem ser trazidas ainda mais forças. A Síria está apertada entre o CENTCOMao sul e ao leste, e a OTAN ao norte e a oeste; e as forças russas mais próximas estão na Crimeia. A verdade é que EUA e OTAN não são os únicos que poderiam obter o controle sobre os céus sírios: até Israel, sozinha, provavelmente também poderia. Assim sendo, assumindo-se que não sejam imbecis suicidários, o que lhes parece que os russos devam fazer? Se vocês fossem russos, como jogariam suas cartas?

Pergunta 2: os russos têm vantagens de algum tipo?

Ah, sim, têm, com certeza. De fato, os russos têm várias vantagens sobre os norte-americanos. São as seguintes, apresentadas adiante sem qualquer ordem específica:

·  Todos os coturnos em solo que realmente interessam são ou aliados russos ou, no mínimo, têm hoje boas relações com a Rússia: os sírios, os iranianos, o Hezbollah e até a Turquia estão todos muito mais perto da Rússia que dos anglo-sionistas. Os únicos coturnos anglo-sionistas em solo que realmente fazem alguma diferença são os Daech & Co.·  A opinião pública interna: na Rússia, a intervenção militar é compreendida e apoiada por vastíssima maioria de russos. Nos EUA o público é mal informado, não recebe notícias que façam sentido e mantém-se profundamente cético para tudo que tenha a ver com essa mais recente guerra que os EUA escolheram guerrear. Não só isso, como, além disso, Putin goza de altíssimo prestígio entre o povo russo; Trump mal consegue hoje evitar um impeachment.·  A opinião pública externa: enquanto nos EUA a mídia sionista [ing. Ziomedia] está empenham em esforço realmente heroico para evitar absolutamente qualquer menção ao fato de que até a presença na Síria – pra nem falar da real agressão contra o país – é completamente ilegal para a lei internacional, no resto do mundo quase todos sabem disso. As mentiras deliberadas só fazem comprometer ainda mais a figura dos EUA no mundo.·  Os russos têm menos alvos lucrativos a oferecer aos anglo-sionistas, que os norte-americanos. Dito em termos simples, os russos têm Tartus e Khmeimim. Os norte-americanos têm longa lista de bases e prédios na região que podem, todos, se tornar alvos potenciais.·  A força de vontade, a coragem e a determinação do soldado russo são muitas e muitas vezes maiores e mais poderosas que as dos contrapartes norte-americanos. Há muitas razões que explicam isso, históricas e políticas, mas não acho que haja qualquer dúvida de que embora os EUA adorem matar pelo próprio país, são consideravelmente menos entusiastas de morrer por ele, especialmente quando a parte “pelos EUA” é extremamente dúbia e quando o soldado da linha de frente sente que é parte de algum complexo jogo político, que ele não compreende mas do qual faz as vezes de bucha de canhão.·   Há armamentos e pessoal russo distribuídos entre as forças sírias. Sabemos que especialistas russos, técnicos, conselheiros militares e forças especiais operam em campo na Síria. Significa que os russos podem provavelmente usar um S-300 sírio para derrubar aviões dos EUA sem dar necessariamente prova aos EUA do envolvimento deles. Para usar uma velha expressão da CIA, os russos podem contar com “negabilidade plausível”.·  Sabemos que a Rússia tem capacidade de inteligência muitíssimo superior na Síria, como se constata no tipo de dano que ataques aéreos e por mísseis russos infligem aos alvos, sobretudo se comparado à falta tristemente óbvia, nos EUA, de conhecimento e compreensão efetivos do que realmente se passa no solo.

Assim sendo, como se sintetiza e em que resulta tudo isso?

1) Negabilidade plausível no ar

Primeiro, é muitíssimo claro que os russos não tem qualquer incentivo para iniciar batalha aérea em larga escala nos céus da Síria, contra seus contrapartes norte-americanos. Contudo, o fato de que esse tipo de batalha não interesse aos russos tampouco significa que os russos fugirão de qualquer combate. Por enquanto, os russos parecem tem escolhido uma estratégia de perturbar e gerar incerteza para a força aérea dos EUA, mas a qualquer momento podem decidir atacar aeronaves dos EUA, servindo-se de suas baterias S-300/S-400 baseadas em terra. Eis como podem fazer isso.

Primeiro, só os russos têm S-400s na Síria. Assim, deixemos esses sistemas de lado por um momento, e os mantenhamos guardados só para emergências graves. Em seguida, examinemos inventário de defesas sírias que se encontra na Wikipédia. Atenção especial ao seguinte: o Pantsir-S1 (SA-22). Segundo Wikipédia, há 50 SA-22 na Síria. Já ouviram falar do Panstsir-S1? Provavelmente não.

Esqueçam os S-300/S-400, pense em termos de Pantsir

O Pantsir-S1 (também chamado “SA-22” na classificação dos EUA e OTAN) é sistema de defesa aérea realmente assustador, embora ninguém nem no público em geral nem na mídia sionista jamais se refira a ele. Merece exame cuidadoso.

Pantsir-S1 é míssil terra-ar de médio alcance e sistema de artilharia antiaérea que usa conjuntos de radar em fase para definir alvos e para rastreamento. Área de detecção: 32-45km (20-28mi). Alcance de rastreamento: 24-28km (15-17mi). Pode rastrear 20 alvos, e disparar contra três com quatro mísseis ao mesmo tempo. Conta com um Autonomous Optoelectronic System secundário com alcance de 25km (15mi) contra aeronave do tamanho de um F-16 pequeno. Os mísseis do sistema Pantsir são foguetes de combustível sólido, com alcance de 20km (12mi), teto de 15km (9mi) e velocidade Mach 2.3-2.8. O Pantsir também tem dois canhões duplos de 30mm que disparam 700 rodadas de material explosivo à velocidade de 2’500 rodadas por minuto a uma distância de até 4km (2,5mi). Mas o que realmente interessa no Pantsir é que os dois exércitos, os russos e os sírios sabem operar esses sistemas móveis. Em outras palavras, esses Pantsirs podem ser usados em qualquer lugar e, além disso, podem ser operados por quem estiver por perto. Uau! Até os iranianos têm essa arma!

Os Pantsirs são assustadores (para mim, parecem saídos de filme de Terminator), mas são ainda mais perigosos do que parecem, porque, apesar de serem capazes de cumprir missões completamente autônomas, são também desenhados para serem plugados numa rede global, mediante um datalink digitalmente encriptado, o que lhes permite receber dados sobre os seus alvos a partir de outras bases em terra ou de plataformas embarcadas em aviões. 

Finalmente, mantenham em mente que ninguém realmente sabe quantos Pantsirs os russos levaram com eles para a Síria, quantos os sírios estão atualmente operando, quantos Pantsirs ‘sírios’ são operados pelos russos e plugados na rede russa de defesa aérea ou, falando nisso, quantos Pantsirs sírios e iranianos pode haver por lá.

Assim sendo, temos o quê? Um sistema extremamente móvel (é montado sobre caminhão pesado de alta mobilidade), fácil de esconder (é pequeno), que acerta alvos embarcados em altitudes que vão de zero metros a 15 mil metros, distantes até 20 mil metros. Para fazer isso, usam seu sistema PESA (passive electronically scanned array), seu sistema AOS (autonomous optoelectronic system) ou mesmo dados recebidos de outros radares, inclusive dos russos S-300/S-400, Su-35 ou AWACS.

Inicialmente e oficialmente, os Pantsirs russos têm a missão exclusiva de defender os sistemas S-300/S-400 de mais longo alcance e as instalações russas em Khmeimim e Tartus. Mas na realidade podem ser rapidamente deslocados para qualquer lugar e usados para derrubar aeronaves dos EUA sem que haja qualquer prova de que os russos o tenham feito! Claro, os russos terão de ser muito cuidadosos com a fonte que usem para rastrear aviões dos EUA e fornecer ao míssil Pantsir o seu respectivo alvo. Tanto quanto sei, os mísseis Pantsir não têm sistema de radar ativo, sequer semiativo, mas seu AOS permite definição completamente silenciosa/passiva de alvos. Dependendo dos quadros de inteligência com que os norte-americanos contem ou não contem no momento do ataque, pode acontecer de absolutamente não terem como saber quem derrubou o avião dos EUA, muito menos provar.

Em resumo, é o seguinte: enquanto o mundo mantém-se focado nas capacidades superiores dos S-300/S-400, os russos já tem instalado um sistema de defesa muitíssimo mais flexível de curto-e-médio alcance, que (porque é móvel) os Tomahawks não podem destruir e muito difícil de atingir com ataque aéreo. Esse sistema pode ser instalado em qualquer ponto na Síria e pode ser usado, sempre garantindo aos russos uma negabilidade plausível. 

Claro, os EUA podem tentar voar fora do envelope [plano] de voo do Pantsir, mas isso tornaria muito difícil usar qualquer tipo de aeronave. Outra opção para os EUA seria contar exclusivamente com suas aeronaves que voam abaixo dos radares [ing. low-RCS aircraft] (B-1, B-2 para atacar, e F-22s para protegê-los), mas isso reduziria dramaticamente as capacidades doCENTCOM/OTAN nos céus da Síria.

Concluo essa sessão lembrando os leitores de que nem EUA nem qualquer outro país da OTAN jamais tiveram de operar em ambiente tão perigoso como os céus sírios. Os pobres sérvios só tinham sistemas antiquados de defesa aérea e mesmo contra eles a OTAN falhou miseravelmente. Na Síria, as defesas aéreas russas podem pôr a correr os norte-americanos sem sequer precisarem usar nenhuma das suas (assumidamente poucas) aeronaves de capacidade superior.

2) Negabilidade plausível em solo

Será que alguém algum dia considerou que os russos podem resolver atacar forças dos EUA instaladas no solo, na Síria (ou também, claro, no Iraque)? Parece que não, apenas porque muita gente assume que a força russa na Síria é muito pequena e portanto não poderia atacar força norte-americana muito maior e mais forte. Mas, assim como na guerra aérea, esse também é pressuposto errado, baseado na ideia de que os EUA sempre saberiam quem os atacou. Na verdade, os russos podem servir-se de forças especiais (sejam as já alocadas ou outras, trazidas especialmente) para atacar alvos norte-americanos – e manter a seu favor a negabilidade plausível.

Como?

Aqui, o que já sabemos:

Já há operadores russos alocados e ativos na Síria:

Para começar os famosos Spetsnaz (Spetsnaz GRU Gsh). São unidades de forças especiais ligadas ou ao Distrito Militar Sul ou diretamente subordinadas ao Quartel-General da Inteligência Militar (GRU) em Moscou. Diferentes das forças Spetsnaz GRU das brigadas GRU dos Distritos Militares, esses pequenos grupos (8-12 soldados) são recrutados exclusivamente entre oficiais de carreira.

Em seguida, as Forças Especiais Russas [ing. Russian Special Forces, SSO], criação relativamente recente, que não se confundem com os Spetsnaz GRU, embora haja várias semelhanças entre essas duas formações, estão na Síria mais ou menos oficialmente (canais da TV russa apresentaram matérias sobre os SSOs, inclusive com entrevistas). São subordinados ao Estado-maior das Forças Armadas (Aqui, uma foto deles, feita por um jornalista russo na Síria).

Por fim, há notícias de uma unidade russa sem nome e muito secreta que trabalha na Síria (por exemplo, aqui), mas nem Vympelnem Zaslon encaixam-se na descrição (a primeira é hoje subordinada ao Serviço de Segurança da Federação Russa, quer dizer, lida com questões de segurança interna; e a outra é mais um serviço de proteção a funcionários, suas residências e a civis russos no exterior). Não encontrei informação sobre quem forma aquela unidade russa sem nome, mas meu palpite é que sejam hoje o que Vympel foi: forças especiais do Serviço de Inteligência Estrangeira, trabalhando em íntima cooperação com as redes de agentes do Serviço de Segurança da Federação Russa na Síria.

Em qualquer desses casos, os russos já têm forças especiais mais do que suficientes na Síria para começar a atacar alvos norte-americanos, na Síria e também em outros pontos na região. Por exemplo, durante a batalha por Aleppo houve várias relatos de atiradores russos matando líderes do Daech, um depois do outro, o que quase decapitou todo o alto comando do grupo. Não seria impossível de fazer também com altos oficiais dos EUA em campo na Síria. Forças Especiais também podem conseguir que ataques “inexplicáveis” de mísseis atinjam forças dos EUA. 

Mas o aspecto mais importante aqui é que essas forças podem ser usados sob absoluto anonimato, sem que coisa alguma as identifique como forças russas. Esses soldados tem feições de árabes, falam árabe e portam identidades de cidadão árabe. Os soviéticos usaram precisamente esse recurso no Afeganistão, para derrubar o presidente afegão Hafizullah Amin. Assim também, o presidente Ramzan Kadyrov da Chechênia admitiu abertamente que agentes chechenos infiltraram-se na estrutura de comando do Daech. Por fim, mesmo que algum “russo” seja apanhado e de algum modo identificado, há cerca de 5 mil cidadãos russos de todos os mais variados grupos étnicos (inclusive eslavos) alistados no Daech como combatentes, e será impossível provar que combatente X ou Z seja agente de algum serviço russo de inteligência.

Resumo disso tudo é: a Rússia também pode, se assim decidir, atacar forças dos EUA na Síria, e garantirá para ela mesma uma muito plausível negabilidade.

Assim sendo, imaginem – sistemas russos de mísseis terra-ar [orig. Russian SAMS] atacando aeronaves dos EUA em voo, e forças especiais russas atacando soldados dos EUA em solo. E tudo isso protegido por negabilidade perfeitamente plausível.

Ainda não estão convencidos?

Uma das muitas serventias da negabilidade plausível, especialmente contra inimigo que mente sistematicamente

É possível que você se pergunte que utilidade teria alguma negabilidade plausível contra país que vive de inventar as histórias mais ridículas sobre hackers russos que roubariam eleições ou exércitos russos invisíveis no leste da Ucrânia. E, concordo plenamente, contra país que tem 16 agências de inteligência e longa e vergonhosa história de inventar inteligência – sim, claro, com toda a certeza os norte-americanos, em todos os casos, sempre podem dizer que “os russos fizeram tudo”, “culpa dos russos”. E a mídia sionista imediatamente se poria a repetir vezes sem fim, sempre a mesma história inventada, sempre sem prova alguma.

Mas essa história tem outro lado: se se pensa em quantas histórias a máquina de propaganda dos EUA inventou e inventa sobre sérvios genocidas, estupros na Líbia estimulados por Viagra distribuído por Gaddafi, iraquianos jogando futebol com bebês em vez de bola, iranianos nuclearizados semana que vem, sírios a bombardear o próprio povo e só Deus sabe quantas outras sandices – que credibilidade terão as mesmas ‘fontes’, quando se puserem a acusar os russos “de praticar esse ato vicioso e desumano” (seja qual for o “ato”)? Mesmo agora, enquanto escrevo, há notícias de que a Casa Branca já prepara o cenário para forjar mais um ataque sob falsa bandeira na Síria.

Aqui, sejamos honestos: é preciso reconhecer que Tio Sam mente cada vez que mexe a boca para falar, e, por mais que a mídia sionista descerebrada finja levar muito a sério cada nova mentira (além de repetir também as velhas), o resto do planeta, incluindo o povo norte-americano, não tem ilusões.

Agora imagine um Pantsir-S1 operado por tripulação russa na Síria, que derrube um avião dos EUA, ou operadores russos que façam voar pelos ares uma tenda onde esteja o quartel-general das forças dos EUA na Síria. Não só não haverá provas de que algum russo fez alguma coisa, como também, ainda que apareça alguma, ninguém acreditará nos norte-americanos. Além do mais, é preciso não esquecer a pergunta absolutamente óbvia: que interesse teriam os EUA em culpar os russos? Eu diria que nenhum. Muito mais sentido faria culpar os sírios e em seguida bombardear algum prédio do governo sírio (digamos, o prédio da inteligência militar no centro de Damasco, hoje provavelmente vazio) e declarar que “o recado está dado”. Muito mais sentido faria isso, que se expor ao risco de atacar forças russas na Síria.

Os norte-americanos poderiam retaliar à altura?

Provavelmente não. Lembrem que não há coturnos dos EUA em solo, nem as capacidades de inteligência, nem apoio político (interno ou externo) para se safarem. E não só isso, mas as forças especiais dos EUA têm longa história de pôr a perder até operações relativamente simples, e não os vejo capazes de escapar da responsabilidade por ataque direto contra forças russas em Khmeimim, ou onde for. No máximo, farão o que quase sempre fazem – subcontratar locais e passar adiante o serviço, o que funciona bem contra civis indefesos, e acaba em desastre contra alvo realmente “duro”.

Os muitos paradoxos da guerra

Primeiro, deve-se ter sempre em mente que ação militar, qualquer que seja, nunca é mais que um meio com vistas a algum objetivo político, a “continuação da política por outros meios”. Por causa dessa natureza altamente política, há circunstâncias nas quais ser o lado mais fraco gera vantagens consideráveis. A chave da estratégia defensiva do lado mais fraco é não permitir que o lado mais forte imponha o tipo de guerra que maximiza as vantagens do lado mais forte. 

No caso da Síria, tentar derrotar toda a força aérea do CENTCOM com apenas uns poucos combatentes seria estupidez, pura e simplesmente. Mas, dado que os EUA têm, sim, enorme vantagem no número de mísseis cruzadores que podem disparar – os russos podem fazer o que os sérvios fizeram no Kosovo, e o Hezbollah fez em 2006 contra Israel: não dar alvos fixos ao inimigo. No contexto sírio, significa o seguinte: usar exclusivamente sistemas móveis de defesa aérea. 

Por fim, mas não menos importante, significa também atacá-los onde mais dói – na moral. Lembram como ficaram completamente doidos quando não conseguiam ver quem os atacava no Vietnã?

Um elefante numa loja de porcelana é visão assustadora, claro que é. Mas depois que você superar o medo inicial, você rapidamente perceberá que ser elefante grande e nervoso dificulta as coisas, e é difícil para o elefante executar movimento realmente inteligente. Esse é exatamente o problema dos EUA, especialmente das forças armadas dos EUA: são tão grandes e tão confiantes, que praticamente já não executam nenhum movimento sofisticadamente cauteloso, do tipo que a vida impõe a ator muito mais fraco. Por isso é que quase sempre o elefante termina por destruir a loja, perder a porcelana e acabar com ar de idiota. Some isso a um foco quase total sobre o remendo mais rápido, e você terá uma receita de desastre.

As duas opções para um contra-ataque russo sob a cobertura de negabilidade plausível são apenas as duas que me ocorreram. Na verdade, há muitas outras, inclusive muitas ainda menos “visíveis” que as que sugeri. Meu principal objetivo foi ilustrar que absolutamente não há razão para que os russos ajam como Omar Lamrani sugeriu, naquele artigo (francamente, artigo idiota). A verdade é que absolutamente não tenho ideia de como os russos possam responder, e é assim que deve ser. A única coisa que sei com certeza é que os russos não responderão como Lamrani pensa que respondam, só isso.

Gente mais esperta dentro do Pentágono e, ao que parece, também em campo, estão tentando empenhadamente evitar qualquer guerra contra os russos, não porque temam alguma resposta russa específica, mas porque veem claramente que estão lidando com ator imprevisível e muito sofisticado. 

A boa notícia é que os russos também estão empenhados em evitar qualquer confronto com os norte-americanos, sobretudo na Síria, longe de casa e espremidos numa parte do mundo tão amplamente controlada pelo CENTCOM/OTAN.

Para concluir, quero mencionar apenas uma pequena amostra do que não mencionei, mas os comandantes dos EUA terão de considerar antes de decidir a favor de ataque direto contra forças russas: vários cenários navais, especialmente os que envolvam submarinos de ataque a diesel; opções russas para se instalar no Irã; opções retaliatórias russas em outros teatros como Iraque, Paquistão e, especialmente, Afeganistão. Aqui vai uma boa: russos realmente quebrarem (trata-se de quebrar códigos, não de “hacking“, que é palavra errada) redes de computadores cruciais para os EUA, inclusive com distribuição de informação que cause embaraço (imaginem um “WikiLeaks ‘bombado’, cheio de esteróides”). Por fim, se encurralada, uma opção possível para a Rússia seria atrair as forças, os recursos e toda a energia dos EUA para bem longe da Síria, para alguma outra região realmente crítica para os EUA. Alguém aí disse “Coreia do Norte”? Uh?

Há incontáveis outras opções e as apostas são altíssimas. No mundo dos sonhos do Sr. Lamrani, tudo é simples e fácil. O que só faz demonstrar e comprovar, mais uma vez, que guerra é assunto sério demais para ser entregue a civis.*****

[assina] The Saker

[1] No original “plausible deniability“. É uma das “expressões nebulosas” de que fala Steven Pinker em Do Que É Feito O Pensamento. A língua como janela para a mente humana (São Paulo: Companhia das Letras, 2008). Pode-se traduzir, tentativamente, como “capacidade para garantir uma possibilidade plausível de negar” [seja o que for]; diz-se de acusação que não possa ser provada e cuja negação possa ser plausivelmente/racionalmente aceita. No jargão corrente das comunidades de espionagem, a expressão tem sido usada nos casos em que a ação é premeditada, para não deixar pistas ou rastros. Exemplos de casos em que a negabilidade plausível pode vir a beneficiar criminosos são, por exemplo, meios de tortura como descargas elétricas e simulação de afogamento, que não deixam marcas no corpo, o que impede que se comprove a tortura; chantagem, ameaças e intimidação de testemunhas também são meios para gerar alta “capacidade plausível de negar”, dentre outros. Como arma de defesa, a negabilidade plausível pode ser utilíssima – especificamente, como no artigo acima, contra inimigo que mente sempre, muito, sistematicamente e não goze de alta credibilidade [NTs].

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