M. K. Bhadrakumar – 22 de dezembro de 2024
O presidente russo, Vladimir Putin, durante sua maratona anual sobre os resultados do ano, uma discussão interativa pela televisão com o público russo e a mídia em Moscou, em 19 de dezembro, falou longamente sobre os recentes acontecimentos na Síria.
Rebeldes islâmicos do Hayat Tahrir al-Sham acendem uma fogueira para se aquecer enquanto guardam a embaixada iraniana abandonada em Damasco, em 13 de dezembro de 2024
Esses foram os primeiros comentários públicos de Putin sobre o assunto e, 12 dias após a tomada de Damasco pelas forças armadas de oposição e o exílio do ex-presidente Bashar al-Assad e de sua família em Moscou, significam que o Kremlin está recalibrando sua bússola de estratégias para a Ásia Ocidental.
Putin revelou que em breve terá uma reunião com Assad, sinalizando um nível de transparência que é muito raro na diplomacia internacional em circunstâncias voláteis comparáveis. Ainda não sabemos, por exemplo, o que aconteceu com o presidente afegão Ashraf Ghani após a tomada do poder pelo Talibã, há quatro anos, ou se o presidente Joe Biden teve a cortesia de receber o aliado dos Estados Unidos, que caiu – e ainda por cima era um antigo representante.
Putin não vê razão para se sentir envergonhado ou petrificado com a mudança de regime na Síria. A missão da Rússia na Síria era dizimar os grupos extremistas patrocinados pelos EUA que desestabilizavam o país e a região como parte de um projeto de mudança de regime. E esse empreendimento foi extremamente bem-sucedido, pois a Rússia infligiu uma derrota esmagadora ao projeto americano. A missão russa na Síria nunca teve uma agenda oculta para apoiar o regime sírio. Como Putin explicou, as forças terrestres russas nunca foram mobilizadas ou envolvidas nos combates na Síria.
A rapidez com que Assad recebeu asilo em Moscou e a transferência pacífica de poder em Damasco indicaram que o Kremlin não foi pego de surpresa. Mais uma vez, compare a evacuação caótica e desesperada EUA dos em 16 de agosto de 2021 do aeroporto de Cabul com os afegãos caindo do céu quando os aviões militares americanos decolaram. No entanto, a propaganda ocidental está pintando a tudo de vermelho, dizendo que a Rússia foi “derrotada” na Síria!
A narrativa do ministro das Relações Exteriores da Turquia, Hakan Fidan, parece totalmente plausível quando ele afirma que, a pedido de Ancara, Moscou e Teerã aconselharam Assad a transferir o poder pacificamente. Fidan revelou à emissora NTV em 13 de dezembro: “Conversamos com os russos e iranianos e dissemos a eles que o homem em quem eles haviam investido não era mais alguém em quem valia a pena investir. Eles fizeram uma ligação telefônica e, naquela noite, Assad foi embora”.
Putin reconheceu abertamente que a Rússia mantém contatos com o HTS e que a conversa entre eles terá influência sobre o destino das bases em Latakia. A Rússia está indicando que a comunidade internacional pode usar as bases para lidar com a assistência humanitária à Síria.
É possível que a Turquia, a Rússia e o Irã tenham sincronizado seus relógios. Teerã divulgou no fim de semana que está reabrindo a embaixada em Damasco e que o HTS se ofereceu para fornecer segurança para o funcionamento da missão. Durante todo o evento de três horas e meia em Moscou, na última quinta-feira, Putin não fez nenhuma crítica ao apoio da Turquia ao HTS nem questionou a legitimidade das preocupações declaradas de Ancara com a situação síria – embora ele continue cético quanto à possibilidade de uma solução para a questão da nacionalidade curda, que envolve 30 a 35 milhões de curdos espalhados pela Turquia, Síria, Iraque e Irã.
Putin afirmou que Moscou já transmitiu ao HTS e aos estados regionais que as bases russas são “capazes de oferecer assistência… (e) isso foi recebido com compreensão e disposição para colaborar”. Putin enfatizou: “Uma maioria esmagadora deles expressou interesse em manter nossas bases militares na Síria”.
Putin ridicularizou o prognóstico do governo Biden de que a Rússia enfrenta uma “derrota” na Síria. Sua mensagem geral foi que “haverá muito o que discutir” com Trump quando eles se encontrarem, dando a entender que o governo Biden não é mais importante para o futuro da Síria. Os esforços do governo Biden para reunir os Estados árabes não conseguiram ganhar força, pois o déficit de confiança é formidável. Os árabes suspeitam que a ocupação ilegal contínua dos EUA tem motivos ocultos.
De fato, uma nova matriz está surgindo, à medida que a obsessão do governo Biden muda para criar um atoleiro no Oriente Médio para o novo governo Trump. Em uma reviravolta no domingo, a secretária assistente do Departamento de Estado dos EUA, Barbara Leaf, desembarcou em Damasco para transmitir pessoalmente a decisão dos EUA de descartar a recompensa de US$ 10 milhões pela prisão do líder do HTS (o líder de fato da Síria) Abu Mohammed al-Jolani, após o que ela afirmou serem reuniões “muito produtivas” com os representantes do grupo.
Essa rendição abjeta agora permitirá que Washington suspenda as sanções contra a Síria segundo o infame Caesar Syria Civilian Protection Act de 2019. No entanto, a Rússia superou o governo Biden na Síria. Putin deu a entender que uma relação de trabalho com a nova liderança em Damasco está se desenvolvendo de forma constante. Ele disse: “Não sei, devemos refletir sobre como nossas relações evoluirão com as forças políticas atualmente no controle (em Damasco) e aquelas que governarão esse país no futuro – nossos interesses devem estar alinhados. Se permanecermos, devemos agir conforme os interesses da nação anfitriã”.
Putin observou: “O que esses interesses implicarão? O que podemos fazer por eles? Essas perguntas exigem uma análise cuidadosa de ambos os lados. Já somos capazes de oferecer assistência, inclusive utilizando nossas bases… embora os desafios permaneçam, nossa posição está firmemente alinhada com a lei internacional e a soberania de todas as nações, incluindo o respeito pela integridade territorial da Síria. Isso se estende ao apoio à postura das atuais autoridades que governam o território da República Árabe da Síria. Nesse sentido, estamos ao lado delas”.
Essa é uma grande declaração e repercutirá em todo o mundo árabe. Não se engane, a transição da Rússia para a era pós-Assad está bem encaminhada. Os contornos de uma abordagem política pragmática estão surgindo. A inteligência russa teria feito o trabalho de pá nessa transição.
Putin observou, de forma provocadora, que “os grupos que estavam lutando contra o regime de Assad e as forças do governo naquela época passaram por mudanças internas. Não é de surpreender que muitos países europeus e os Estados Unidos estejam tentando desenvolver relações com eles agora. Eles estariam fazendo isso se fossem organizações terroristas? Isso significa que eles mudaram, não é mesmo? Portanto, nosso objetivo (a intervenção da Rússia na Síria em 2015) foi alcançado, até certo ponto.”
Nos bastidores, a Turquia está tacitamente incentivando a parceria da Rússia com o HTS. Significativamente, Putin falou sobre as ramificações do problema curdo, em que a Turquia pode precisar da cooperação da Rússia para navegar pelo caminho complicado que está por vir.
As preocupações da Turquia têm quatro modelos principais: um, garantir a segurança da fronteira da Turquia com a Síria; dois, criar condições para o retorno dos refugiados sírios da Turquia; três, afastar as forças curdas sírias das regiões de fronteira; e, quatro, combater o apoio secreto da Europa e dos EUA e de Israel a um estado curdo independente. Putin ressaltou “a gravidade da questão curda”. Não há conflito de interesses entre a Turquia e a Rússia.
Embora Putin tenha expressado compreensão e certa simpatia pelas preocupações legítimas da Turquia, ele não mediu palavras para condenar a apropriação de terras por parte de Israel na Síria. Em suas palavras, “Acredito que o principal beneficiário dos acontecimentos na Síria seja Israel… Nas Colinas de Golã, Israel avançou ao longo da frente por 62-63 quilômetros e a uma profundidade de 20-25 quilômetros. Eles ocuparam fortificações originalmente construídas para a Síria pela União Soviética, fortes estruturas defensivas comparáveis à Linha Maginot.
“Parece que já há vários milhares de funcionários (israelenses) estacionados lá. Parece que eles não apenas não têm intenção de sair, como também podem estar planejando reforçar ainda mais sua presença.”
Putin alertou que “mais complicações no futuro” são esperadas, já que a ocupação israelense poderia “resultar na fragmentação da Síria”. Nesse sentido, a Rússia compartilha da mesma percepção que a Turquia, o Irã e os países árabes.
É interessante notar que Putin exalou confiança de que a Rússia está do lado certo da história com uma redefinição de política que visa harmonizar-se com a Turquia e o Irã, bem como com os estados árabes. De fato, essa façanha diplomática aumenta a posição da Rússia na Ásia Ocidental.
Por outro lado, recuar ou não na Síria – essa é a questão que assombrará a presidência de Trump. O Pentágono já está reagindo contra a declaração de Trump de que “não temos nada a fazer (na Síria)”. O porta-voz do Pentágono, Pat Ryder, revelou que o número de tropas dos EUA na Síria chegou a 2.000 – mais do que o dobro das novecentas relatadas anteriormente. Essas tropas permanecem ativamente posicionadas, sem planos de retirada.
Fonte: https://www.indianpunchline.com/putin-weighs-in-on-the-syrian-situation/
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