Os BRICS : Q&A com Márcia G. Damasceno

Márcia G. Damasceno(*) e Quantum Bird – 21 de outubro de 2024


Os BRICS+ são uma parceria entre as economias de países emergentes. Fazem parte do grupo os dois países mais populosos do mundo, Índia e China, cada um com 1,4 bilhão de habitantes. Brasil está em sétimo na lista, com 203 milhões, a Rússia em nono com 143 milhões, e a África do Sul em 25º, com 59 milhões. Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã são os novos países membros, ricos em recursos naturais, como petróleo e gás natural.

***

A presença do Irá e da Arábia Saudita chama a atenção pois são países em competição geopolítica pela hegemonia no Oriente Médio e potenciais rivais pelo controle dos mercados de petróleo. 

Pode-se dizer que a China como intermediária foi a chave para que Irã e Arábia Saudita possam juntos fazer parte dos BRICS+?

Q.B. Absolutamente. A China depende criticamente dos recursos energéticos do Irã e da Arábia Saudita para o funcionamento da sua economia. Por isso, os chineses se empenharam em fomentar o restabelecimento da normalidade diplomática na região. Do ponto de vista de Teerã e Riad, também fez todo sentido, pois estes países têm os EUA como principal inimigo. O caso do Irã não precisa de maiores explicações, pois o país se encontra sob sanções pesadas do Ocidente Coletivo desde a Revolução Islâmica em 1979, e foi praticamente forçado a buscar alternativas aos mercados ocidentais. Já a Arábia Saudita, que costumava ser um aliado dos EUA, remodelou bastante a sua relação com o ocidente. A visão do governante Mohamed bin Salman (MbS) , principe coroado saudita, sobre a modernização e a diversificação da economia do reino para além do petróleo, entrou em choque com a doutrina dos EUA de manter o país como uma colônia de exploração retrograda. Vimos primeiramente tentativas de golpes palacianos e posteriormente a fricção aberta entre Riad e Washington em uma série de questões. A coisa azedou de vez quando a Arábia Saudita se recusou repetidamente a endossar as sanções e sabotagem econômica estadunidenses contra a Rússia, e quando aprofundou relações econômicas com a China, nas áreas de energia e infraestrutura. Tudo isso levou a uma série de desenvolvimentos, como o fim do petrodólar e entrada do reino nos BRICS. Para ser mais preciso, a Arábia Saudita ainda nao confirmou oficialmente sua adesão, mas também não recusou. MbS estará em Kazan, provavelmente para acertar os ultimos detalhes burocráticos.

Quais os desafios significativos que precisam ser gerenciados em função das perspectivas e interesses dos países nas questões globais?

Q.B.: As pessoas precisam entender que os BRICS+ não são um bloco econômico, no mesmo sentido da União Europeia, ou uma aliança militar. Os BRICS estão se configurando como uma plataforma alternativa de negócios e cooperação econômica com o objetivo de contornar o sistema econômico estabelecido no pós-guerra, controlado pelos EUA e baseado na proeminência do dólar como moeda de reserva internacional. Portando, o maior desafio dos BRICS consiste na criação de uma infraestrutura para essas transações econômicas que seja ao mesmo tempo inclusiva e eficiente, enquanto evita a possibilidade de abusos por países membros, para o exercício de sanções e sabotagem econômica, por exemplo. Devemos sempre ter em mente, que o principal motivador para o surgimento dos BRICS foram os próprios EUA, que passaram a usar o sistema baseado no dólar para exportar a sua inflação para o resto do mundo, e praticar sabotagem econômica contra países fora, ou relutantes em fazer, da esfera de influência estadunidense. Os países dos BRICS não estão, portanto, conectados por acordos vinculantes que ditam políticas domesticas ou mesmo políticas externas. A não interferência nos assuntos domésticos dos parceiros é um dos pilares da organização, por exemplo. Outro paradigma é a acomodação dos interesses dos membros via plataformas de cooperação e acordos ganha-ganha.

O banco dos BRICS, instituição criada em julho de 2014, marca um fenômeno de diversificação das fontes de financiamento para cobrir o grande déficit de infraestrutura nos países emergentes. No cenário mundial, o banco dos Brics+ é visto como um instrumento capaz de alterar a geopolítica financeira?

Q.B.: O banco dos BRICS precisa ser profundamente reformulado. Tal como está não é capaz de operar efetivamente como um instrumento de mudança geopolítica e geoeconômica. O mundo mudou muito desde sua fundação , e essas mudanças não se refletiram na estrutura do banco. Existe ainda um grande percentual de recursos denominados em dólares e a própria política de gestão e financiamento do banco não é muito clara. Ele parece estar a meio caminho entre um banco de financiamento e uma espécie de banco central dos BRICS. Claramente sua estrutura precisa ser refinada. Eu indico a leitura dos textos de Michael Hudson e Sergey Glazyev, que podem ser encontrados aqui mesmo no Saker Latinoamérica, para entender melhor os aspectos técnicos e políticos associados ao Banco dos BRICS.

Em 2022, o Brasil teve um volume de transações de US$ 177,7 bilhões, sendo US$ 99,4 bilhões em exportações brasileiras para China, Índia, Rússia e África do Sul e US$ 78 bilhões em importações de produtos vindos desses países. Em 2023, o volume já atingiu US$ 102,3 bilhões (US$ 63,2 bilhões em exportações e US$ 39 bi em importações. A China comprou 90% de toda a exportação brasileira destinada aos BRICS, cerca de US$ 89,4 bilhões. A Índia importou 6,3% (cerca de US$ 6,3 bilhões), a Rússia foi destino de 2% das exportações (US$ 1,96 bilhão) e a África do Sul, de 1,7% (US$ 1,7 bilhão). 

No ano passado, o produto mais exportado pelo Brasil para os BRICS foi a soja, com 33% do total, seguida por petróleo (18%), ferro (18%) e carne bovina (8,2%). Fertilizantes (10%), válvulas e diodos (8,9%), produtos químicos (7,9%) e produtos de telecomunicação (5,3%). 

O governo brasileiro afirma que o principal objetivo do bloco é alterar o sistema de governança global, por meio da cooperação, com a reforma de mecanismos como o conselho de segurança da ONU, e apresentar alternativas às instituições como o FMI para o fomento às economias emergentes, como o NDB – New Development Bank, atualmente liderado pelo Brasil. Na prática, o que isso quer dizer?

Q.B.: Temo que não queira dizer nada. São apenas bravatas, pois os BRICS são mal compreendidos pela classe política e elite brasileiras. Os próprios números que você indicou já são suficientes para demonstrar isto. O Brasil não precisava estar nos BRICS para exportar o grosso da produção para a China, certo? E do que estamos falando? Que produção é essa? Estamos falando de soja e commodities diversas, como minério de ferro, alumínio e carne. Ou seja, são essencialmente, os mesmos produtos e matérias-primas que o Brasil sempre exportou, com pouco valor agregado. Isto expõe duas coisas: a estrutura econômica colonial não foi desconstruída e o Brasil segue perdendo a chance de diversificar a economia usando a plataforma dos BRICS. Ouvimos o tempo inteiro sobre comitivas de empresários brasileiros, patrocinadas pelo governo, visitando a China, em busca de negócios. Não vemos esse mesmo movimento na direção do Irã, Arábia Saudita, Índia, Egito etc. Entende o que eu quero dizer? Então quando falamos de Brasil, em termos geoeconômicos, o que temos é uma regressão à arquitetura econômica colonial por um lado, e pelo outro, o país sem política industrial consistente, se desindustrializando por opção (obrigado PT e PSDB), condenando a sua população ao subemprego e a padrões de vida cada vez piores, exportando matérias-primas brutas para financiar a importação de bens manufaturados. A miopia é completa nesse sentido.

Sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU e etc. Novamente, palavras ao vento. O Brasil não tem estatura militar e diplomática, e se recusa a desenvolve-la, para fazer parte de uma organização deste tipo. Todos vimos o desastre que foi a intervenção brasileira, patrocinada pela ONU, no Haiti. Além disso, o país se despediu para sempre de qualquer papel de liderança na América Latina, quando resolveu se intrometer nas questões domesticas venezuelanas, não reconhecendo o resultado das eleições e ditando medidas para as instituições venezuelanas. O Brasil simplesmente violou um dos princípios básicos dos BRICS, contra um futuro membro do grupo – pois a entrada da Venezuela é inevitável. A reforma do Conselho de Segurança da ONU, se um dia acontecer – eu sou cético – vai se basear na nova arquitetura estratégica global. Essa arquitetura estratégica ainda está sendo disputada, e o Brasil não é um dos competidores aqui. Os representantes do Sul Global são o Irã, a Rússia, a China, a Índia, a Venezuela, e chegando rápido, temos a República Democrática Popular da Coreia.

Temos um cenário internacional caracterizado pela polarização política, com o progresso de duas guerras, que definem a ampliação dos Brics+ para além das questões econômicas. Estados Unidos e China, as principais potencias mundiais ampliam a corrida para conquistar o maior número de países aliados. Como os Brics+ vão se comportar em relação à essa questão?

Q.B.: Essa polarização é falsa, e digamos, unilateral. China e Rússia, e mais amplamente os BRICS , não estão buscando antagonismo com o Ocidente Coletivo, e com os EUA, mais especificamente. A mentalidade de cortina de ferro, típica da Guerra Fria, que gera essa narrativa de polarização que você mencionou, emana dos EUA. As pessoas devem ter em mente que a China não tem aliados. A China tem, por exemplo, uma parceria estratégica com a Rússia, que em certo sentido é mais ampla do que uma aliança militar, mas não implica as obrigações de defesa mútua etc. Por outro lado, o único aliado da Rússia de fato é a Bielorrússia, que tem um tratado chamado Estado de União com a Rússia, recentemente assinado e em curso de implementação. De resto, assim como a China, a Rússia tem parceiros estratégicos. As parcerias estratégicas estão se tornando populares no Sul Global porque os países entendem que não existe vantagem em formar alianças militares no sentido convencional, eles preferem manter o espaço aberto para diplomacia e articulação de interesses de forma adaptativa e proativa. Os EUA ficam preocupados com a difusão deste modelo de cooperação estratégica porque eles sabem que eles são o “assunto” comum dessas reuniões. Aqueles que estavam relutantes em se distanciar dos EUA, mesmo depois da destruição que eles fomentaram na Ucrânia e outros lugares, acabaram de ser convencidos categoricamente pela postura estadunidense de apoio incondicional ao genocídio que os Israelenses estão perpetrando em Gaza e no Líbano. Além de matar indiscriminadamente mulheres e crianças, muitas vezes queimadas vivas, Israel está alvejando e destruindo infraestrutura e pessoal das Nações Unidas, jornalistas e infraestrutura civil crítica como hospitais e escolas. Tudo isto tem recebido apoio vocal e aberto das autoridades dos EUA. Os candidatos a presidente também já expressaram o seu apoio a estas medidas. Então, podemos dizer que o único consenso amplo hoje no Sul Global é a necessidade de se distanciar, de se isolar e se defender da influência nefasta dos EUA.

Para desespero dos EUA, as nações do Sul Global estão buscando esses objetivos estabelecendo parcerias estratégicas, que permitem a ambiguidade necessária para controlar a escalada e negar aos EUA a possibilidade de deflagrar conflitos em larga escala.

Entre os dias 22 a 24, em Kazan, na Rússia, acontecerá a 16ª Cúpula dos Brics+, com presença confirmada do presidente do Brasil e chefes de Estado de outros 32 países convidados, com exceção da Arábia Saudita que irá enviar o ministro das relações exteriores. Entre os temas principais para discussão está um novo sistema de pagamentos que significa a desdolarização, o não uso da moeda estadunidense como moeda comercial. 

Essa proposta para um novo sistema de pagamentos está mais próxima do que imaginamos e o que representa para o sul global?

Q.B.: Parece que devido a um acidente doméstico, o presidente brasileiro não vai comparecer ao encontro. O que é péssimo, pois a pessoa que deve representar o Brasil, Mauro Vieira, ministro das relações exteriores, parece mais entusiasta do G20 do que dos próprios BRICS e sempre que fala, passa uma sensação de falta de contato a realidade.

Ainda não sabemos exatamente o estado de desenvolvimento do sistema alternativo de pagamentos, teremos que esperar para ver. Sobre a desdolarização, ela agora é inexorável. O dólar não vai desperecer da noite para o dia, mas se tornara gradativamente uma moeda como qualquer outra. Como o estado da economia estadunidense não é bom, é provável que o dólar sofra uma turbulência significativa nesse processo. Os BRICS não estão interessados em uma desdolarização abrupta e fora de controle, pois muitas economias ainda possuem reservas grandes nessa moeda. Para o Sul Global, a aparição de um sistema alternativo de pagamentos internacionais, independente e fora da influência dos EUA, significa a possibilidade e ter acesso a recursos e financiamentos sem a necessidade de comprometer sua soberania, ou serem pressionados e punidos por mecanismos como sanções econômicas, confisco de reservas, manipulação de taxas comercias etc.

O governo de Cuba confirmou que solicitou formalmente a entrada no grupo do BRICS.O presidente, Miguel Díaz-Canel, recebeu um convite para participar da reunião ampliada à margem da cúpula. De acordo com o diplomata, cubano Carlos Pereira, o grupo BRICS vem se consolidando com um ator-chave na geopolítica global e como uma esperança para os países do Sul. 

Cuba enfrenta por mais de 60 anos o mais antigo sistema de bloqueio econômico atual que impede o país de se desenvolver economicamente. De acordo com as estimativas da ONU, o embargo tem gerado perdas de US$ 13 milhões de dólares por dia para a ilha.

O que a expansão dos BRICS representa e o muda com a entrada de novos países, especificamente Cuba?

Q.B.: Representaria o fim do embargo econômico à Cuba, com tudo que isto pode representar. O embargo econômico e a sabotagem econômica de Cuba só foi possível devido à hegemonia econômica dos EUA a ao seu domínio sobre as instituições econômicas internacionais. Como apontei anteriormente, os EUA não têm reservas em usar o dólar como arma para sabotar e punir os países que ousam exercer soberania. A primeira consequência da adesão de Cuba aos BRICS seria o desenvolvimento e a atualização da infraestrutura da Ilha. Depois, podemos antever seu desenvolvimento exponencial como um polo turístico e científico, devido a qualidade elevada de seu sistema educacional. Seria a correção de uma das maiores injustiças geopolíticas do seculo XX e o sepultamento de mais uma reminiscência bizarra da mentalidade de soma zero que caracterizou a Guerra Fria.


(*) Márcia G Damasceno é jornalista, professora e educadora social.

Be First to Comment

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.