América Latina: Q&A com Márcia G. Damasceno

Márcia G. Damasceno(*) e Quantum Bird – 2 de outubro de 2024

A América Latina é uma região do continente americano que engloba 33 países, e se caracteriza por uma grande diversidade cultural, econômica e política.

O escritor Eduardo Galeano em ‘As veias abertas da América Latina’ (1971) denunciou a situação de exploração econômica do continente narrando a história de colonização desde o século XV.

Por meio de dados históricos, repletos de revelações sobre a exploração e violência do capitalismo, o pensador uruguaio abordou em seu livro questões que se perpetuam. A realidade da região ainda é imposta pelo neocolonialismo, a base para o capitalismo dependente nos países latino-americanos.

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Como se apresenta hoje o cenário de luta contra essa exploração?

Q.B: A luta pela libertação plena da América Latina e pela desconstrução do legado colonial segue se desenvolvendo com avanços e retrocessos. Como sempre gosto de enfatizar: A colonização não acontece no território. O território pode ser apenas ocupado. A colonização acontece de fato na mente das pessoas. Trata-se, portanto, de um processo violento que deixa sequelas geográficas e psicossociais que se manifestam de muitas formas. Vira-latismo, infestação por elites compradoras, espaço geográfico de circulação orientado para o estrangeiro, cultura de trabalho tóxica e referenciada na escravidão, etc. Talvez o pior legado da colonização seja mesmo a dificuldade de estabelecer uma identidade nacional. Não existem estados-civilização nas Américas. As culturas indígenas foram deturpadas, assimiladas ou destruídas pelo colonizador. Na América Latina, as elites compradoras locais, estabelecidas desde os primórdios da colonização, não hesitam em devotar lealdade à potência dominante do momento, sem jamais cogitar qualquer soberania para os próprios países. Eles simplesmente não se identificam com a nação de origem. Eles se identificam como europeus ou norte americanos. Muitos reivindicam cidadania europeia, e mais recentemente, estadunidense. O resto do povo vive um vácuo de mito civilizatório e cria, portanto, as suas próprias narrativas, ou seja, molda a própria identidade. Isso vale mais ou menos para todos os países. É nesse contexto desfavorável que a luta contra a exploração se desenvolve. Os avanços revolucionários como em Cuba, Venezuela e Nicarágua encontram resistência internacional acirrada, enquanto que os avanços graduais, sem rupturas revolucionárias são sabotados pelas elites compradoras locais em conluio com as ex-potencias coloniais. Em suma, eu diria que o cenário hoje é ao mesmo tempo, favorável, pois existem opções ao Hegemon representadas pelos BRICS+ e outras plataformas colaborativas. Por outro lado, o Hegemon em declínio está mais perigoso que nunca, tentando reafirmar o domínio sobre as antigas colônias na região mediante uma série de ações, como golpes de estado, desestabilização econômica e mudanças de regimes nos países. Estamos observando isso no México, em Honduras e na Venezuela.

O processo de articulação da extrema-direita demonstra como os golpes contra Manuel Zelaya, em 2009, em Honduras; Fernando Lugo, em 2012, no Paraguai; Dilma Rousseff, em 2016, no Brasil; Evo Morales, na Bolívia, em 2019; a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, no Brasil; e a perseguição política e a tentativa de homicídio contra Cristina Kirchner, na Argentina, em 2022 tiveram atitudes e táticas distintas em cada país. Como se mostra atualmente a ascensão do neofascismo?

Q.B.: Pessoalmente, não acredito em ascensão do neofascismo na América Latina. Tampouco compro a ideia de extrema-direita. No meu ponto de vista, o neofascismo está em ascensão na União Europeia e imediações, e é representado pelos próprios governos ditos democráticos. Veja bem, quando falamos de América Latina, todos esses governos e partidos que hoje são referidos como extrema-direita, são, na verdade, representantes de facções das elites compradoras locais e foram de uma forma, ou de outra, instalados pelos Hegemon, mas aí temos um fenômeno curioso: a maioria dos partidos ditos de esquerda, ou centro-esquerda, também foram instalados pelo Hegemon. E ambos, centro-esquerda e extrema-direita, praticam as mesmas políticas econômicas e uma política externa sempre alinhada com os EUA. Como isso é possivel? Acredito que a chave é entender que a esquerda/centro-esquerda da democracia liberal não é de fato uma esquerda histórica e Marxista. É uma esquerda liberal, comprometida com políticas econômicas neoliberais e com a arquitetura da dependência. Assim como a dita extrema-direita. Ou seja, essa arquitetura política fomenta a polarização e garante divisão política da população, enquanto mantém intocados os interesses do imperialismo. Os países da região nos quais existe de fato um governo de esquerda, que articula políticas soberanas em benefício do próprio povo, como em Cuba, Venezuela, Nicarágua e o México, enfrentam a oposição do Hegemon e dos seus vassalos. Resumindo, acredito que toda conversa sobre neofascismo, como oposto a um esquerdismo identitário, é uma distração. O verdadeiro fascismo está no neoliberalismo, que faz parte do novo normal.

A economia mexicana se expandiu e está em alta, atraindo investimentos de empresas. O peso local é uma das poucas moedas que ganharam valor em relação ao dólar nos últimos meses. O México se tornou, no ano passado, o primeiro país exportador para os EUA, desbancando a China. O desemprego é um dos mais baixos da América Latina, com menos de 3%. O presidente mexicano está terminando o mandato com 70% de aprovação e deixando como sucessora Claudia Sheinbaum. Por que não se houve falar do México, podemos dizer que o país está no caminho certo ou corre o risco de uma revolução colorida?

Q.B. Sim, sem dúvidas está no caminho certo. O mandato de Lopez Obrador foi excelente no México. Ele operou de fato no limite do que poderia ser feito para melhorar o status quo da população e a situação geral do país. O partido, Morena, ganhou a maioria dos cargos, creio que 2/3, e agora eles terão a força política para aprofundar as mudanças. Creio que o motivo pelo qual pouco se comenta sobre o México por aqui é bem simples e chama vergonha! Como indiquei, Lopez Obrador exerceu um mandado com muita coragem e compromisso cívico, em condições amplamente desfavoráveis, em comparação as do mandatário brasileiro, mas a coragem, esquerdismo real e criatividade fizeram toda diferença. As tentativas de revolução colorida no México já estão curso, mas acredito que não terão sucesso.

A China emergiu como principal parceiro comercial da América latina. Como os governos latino-americanos poderiam aproveitar essa oportunidade para impulsionar uma agenda de soberania?

Q.B.: É simples, tirando proveito dessa parceria para atualizar a infraestrutura civil, militar e industrial. Infelizmente, muitos estão visualizando a China como o novo Hegemon ao qual aderir, e pensando em parcerias comerciais estreitas, com o único objetivo de escoar minérios e outras commodities para um novo mercado, em troca de produtos manufaturados. Não existe tradição local de pensamento em termos de soberania e desenvolvimento independente.


(*) Márcia G Damasceno é jornalista, professora e educadora social.

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