Para entender a Venezuela: Q&A com Márcia G. Damasceno

Márcia G. Damasceno(*) e Quantum Bird – 20 de setembro de 2024

O país tem a maior reserva comprovada de petróleo do mundo. Rico em biodiversidade e em recursos naturais, são 298,3 bilhões de barris, ou 17,5% de todo o petróleo mundial, e enormes quantidades de carvão, minério de ferro, bauxita e ouro. 

Nas últimas semanas as eleições viraram foco de debate. Líderes de diversas nações se posicionaram, inclusive o Brasil. Para compreender o que acontece na nação das mais urbanizadas na América Latina vamos conversar com Quantum Bird sobre a posição do país no tabuleiro geopolítico.

* * *

A mídia corporativa sempre divulga a imagem da Venezuela como um país pobre e em crise. Cerca de 7,7 milhões de venezuelanos deixaram o país, segundo dados do ACNU, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados. Qual a verdadeira situação econômica do país?

Q.B.: Em todo lugar do mundo, mas principalmente no Ocidente, a mídia corporativa representa os interesses dos grupos oligárquicos estabelecidos. Sendo assim, a forma como a Venezuela é retratada nessa mídia segue o padrão típico de deturpação aplicado a qualquer governo de Esquerda Marxista. Não devemos levar em consideração o que a mídia corporativa diz sobre nenhum governo soberano, e pior ainda, se for de esquerda. Dito isto, além da cobertura falaciosa, o pacote de agressão imperial inclui medidas com impacto econômico, que têm o objetivo de degradar e subverter a ordem pública dos países dissidentes, afim de promover mudança de regime. A Venezuela está sob sanções dos EUA, da UE e do Reino Unido desde pelo menos 1999. Além disso, teve suas reservas monetárias confiscadas e doadas para entidades que promovem a agitação social e tentam derrubar o Governo. Devemos sempre que lembrar que boa parte da economia venezuelana era dominada por multinacionais, que, num ato de sabotagem, simplesmente deixaram o país após a eleição de Hugo Chaves. Depois vieram as sanções econômicas que impedem o estabelecimento de novas empresas e inviabilizam o investimento estrangeiro no país. Desde então, os venezuelanos estão reconstruindo a sua economia praticamente a partir do zero. Por tudo isto, a situação econômica na Venezuela se tornou bastante precária em um dado. A boa notícia é que avanços importantes estão sendo feitos na área de produção de alimentos, defesa e telecomunicações. A possibilidade de entrar nos BRICS abre uma miríade de oportunidades para o restabelecimento da economia.

Parte da comunidade internacional afirma que não existem instituições neutras; o Supremo Tribunal e a autoridade eleitoral estão totalmente controlados pelo governo. A ONU (Organização das Nações Unidas) acusa Maduro de violar Direitos Humanos ao perseguir opositores. Quem são os opositores de Maduro?

Q.B.: Deixe-me iniciar com uma pergunta: quem é essa tal comunidade internacional?

Veja bem, essa pergunta faz todo sentido, pois, mais de 50 países relevantes geopolítica e economicamente, que representam mais de 42% da população mundial, reconheceram prontamente o resultado das eleições. Estes países continuam desenvolvendo relações econômicas e diplomáticas normalmente com a Venezuela. Estou falando de Rússia, China, Irã, Vietnam, Indonésia, e vários outros países do Sul Global. Indico o artigo
“Peso geopolítico do grupo de países que reconheceu a vitória de Nicolás Maduro”. para mais detalhes.

Então, voltemos à pergunta: Quem é essa tal comunidade internacional?

São os países imperialistas, ou seja, os Estados Unidos, o Reino Unido e a Europa, seguidos pelos seus respectivos vassalos. Antes de Hugo Chaves, e também de Nicolás Maduro, a Venezuela fazia parte desse grupo de países submissos. Era um vassalo, e estava reduzida a uma colônia de exploração de petróleo e outras commodities de menor importância. Os opositores de Nicolás Maduro são os mesmos que se opuseram a Hugo Chaves. Os nomes específicos do momento pouco importam. O que devemos ter sempre em mente é que se trata dos membros da elite local venezuelana, oligárquica e compradora, que serviu por décadas aos EUA e à Europa, administrando o país como uma colônia. Essa elite compradora perdeu boa parte das posições de poder com a chegada de Hugo Chaves e a reconquista da soberania. Eles desejam a restauração do antigo regime para recuperar seus privilégios oligárquicos. Essa é a gente que organiza os protestos e conta com o apoio dos EUA e da Europa para desestabilizar o país. Eles clamam por intervenção estrangeira para derrubar Nicolás Maduro e tentam usurpar incansavelmente as eleições.

O governo venezuelano é há tempos acusado de fraude eleitoral e as eleições de 2018 foram consideradas ilegítimas por uma aliança formada por 14 nações latino-americanas, os EUA e Canadá. O que se sabe sobre as eleições e por que Estados Unidos e Europa consideram o governo Maduro ditatorial? Por que a legitimidade de Maduro é questionada?

Q.B.: O sistema eleitoral venezuelano é um dos mais robustos do mundo contra fraudes e um dos poucos sistemas eletrônicos que podem ser efetivamente auditados. O brasileiro, por exemplo, não é auditável. Esses países questionaram todas a eleições venezuelanas dede 1999. O problema não está nas urnas, nas atas, como insistiu ridiculamente o governo brasileiro, ou em qualquer tipo de suposta repressão, ou autoritarismo. Eles acusam a Venezuela de ser uma ditadura porque o país se tornou soberano e prática uma política de perseguir os interesses da população. Concretamente, isto envolveu a estatização de recursos naturais, industriais e infraestrutura estratégica, bem como outras medidas que não se alinham com as exigências dos países imperialistas. Veja bem, o regime peruano é de certo modo uma ditadura. A presidente atual tomou posse via um golpe de estado parlamentar. Alguma reclamação dos imperialistas sobre isso? Claro que não, pois o Peru é um dos vassalos do império na América do Sul. Existem regimes abertamente ditatoriais no Oriente Médio, África e Ásia que são alinhados com o bloco imperialista, e quando é assim, não há nenhuma crítica.

O ministro do Interior, Diosdado Cabello, divulgou neste sábado (14) a prisão de americanos e espanhóis acusados de um plano de atentado contra o presidente venezuelano, Nicolás Maduro.

O ministro também revelou que as forças de segurança apreenderam centenas de armas de fogo que teriam sido introduzidas ilegalmente no país. As prisões ocorrem em meio a fortes tensões diplomáticas entre Caracas e os governos da Espanha e dos Estados Unidos. Qual é o futuro da relação entre esses países?

Q.B.: Não vejo meios da Venezuela manter relações diplomáticas normais com esses países.

A próxima cúpula dos BRICS acontece em outubro, na Rússia. Nicolás Maduro é um dos convidados. No início de agosto, o líder chavista afirmou que poderia colocar blocos de petróleo de gás, operados pelos Estados Unidos e aliados, nas mãos dos BRICS por conta do não reconhecimento de sua vitória nas últimas eleições presidenciais venezuelanas.  O chanceler venezuelano Yvan Gil Pinto afirmou em uma entrevista no fim de agosto que o governo venezuelano já trabalha nos bastidores para ingressar no bloco.

Podemos dizer que a Venezuela está de fato se juntando aos BRICS?

Nicolás Maduro pode usar o bloco como forma de retaliar a crescente pressão internacional sobre seu governo?

Q.B.: Eu não usaria a palavra retaliar. Os BRICS são a opção de facto para a Venezuela continuar se desenvolvimento como um país soberano, evitando o máximo possível a exposição ao sistema financeiro hostil dominado pelo dólar e pelo euro, as armas mais letais do arsenal imperialista. Na próxima reunião, segundo anunciado por Sergey Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, não teremos expansão dos BRICS. Ao que tudo indica, o foco será no estabelecimento de um sistema de transações financeiras e comercias alternativo, baseado em uma cesta de moedas nacionais e uma plataforma de moedas digitais, independente e bem diferente do sistema vigente, denominado em dólar.

A Venezuela e Bolívia foram convidadas para a Cúpula dos BRICS que ocorrerá no próximo mês em Kazan e tudo indica que o processo para sua adesão já começou. Quando isso se concretizar teremos os BRICS efetivamente controlando, por assim dizer, todas a commodities que importam no mundo moderno: petróleo, lítio, minério de ferro, ouro, alumínio, grãos, etc. O ocidente coletivo não estará mais em posição de ditar regras desleais, estabelecer preços e manipular fluxos de importação e exportação de matérias-primas em detrimento dos países produtores. Será efetivamente o fim da ordem imperialista e colonial que já dura 500 anos.


(*) Márcia G Damasceno é jornalista, professora e educadora social.

Be First to Comment

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.