‘Karbala é o caminho para Al-Aqsa’: um diário do Iraque

Pepe Escobar – 29 de agosto de 2024 – [Publicado originalmente no The Cradle. Traduzido e publicado aqui com a permissão do autor.]

O primeiro-ministro do Iraque organizou uma conferência única em Bagdá durante a marcha de 21 milhões de pessoas em Arbaeen, relacionando o assassinato do Imã Hussain em Karbala, no século VII, ao atual genocídio de palestinos por Israel.

BAGDÁ e KARBALA – Chegar a Bagdá hoje é um choque elétrico para qualquer visitante que se lembre da recente e sombria história iraquiana.

Praticamente não há postos de controle, exceto em áreas sensíveis do governo. Nenhum daqueles horríveis blocos de cimento da época da ocupação americana, forçando uma passagem lenta a cada poucos minutos. Não há sensação de perigo imprevisível capaz de atacar a qualquer momento. Uma vegetação exuberante floresce por toda a capital. A Haifa Street foi reconstruída praticamente do zero. Comércio movimentado, desde a ação ininterrupta em Karrada até um complexo de restaurantes à beira do Tigre chamado (muito apropriadamente) Mil e Uma Noites.

Após mais de três décadas de horrores indescritíveis infligidos ao berço da civilização, pela primeira vez, Bagdá exala um senso de normalidade. Isso tem muito a ver com a nova administração, liderada pelo primeiro-ministro Mohammed Shia al-Sudani, que está no poder há pouco mais de dois anos.

Na semana passada, o Gabinete do Primeiro Ministro patrocinou uma conferência exclusiva intitulada The Road to Al-Aqsa Flood (O caminho para o dilúvio de Al-Aqsa), convidando blogueiros e influenciadores populares do mundo árabe – Palestina, Kuwait, Jordânia, Sudão e Líbano, entre outros – e apenas alguns ocidentais. Os blogueiros eram todos jovens; a maioria nunca havia estado no Iraque e, portanto, não tinha lembranças do Shock and Awe e da ocupação – na melhor das hipóteses, alguma lembrança vaga dos anos do ISIS. Todos ficaram impressionados com a hospitalidade, o dinamismo e, acima de tudo, a esperança agora firmemente incorporada à vida em Bagdá.

Na verdade, o governo iraquiano criou um conceito interessante, vinculando uma discussão séria sobre todos os aspectos da atual tragédia palestina não apenas a Bagdá, mas também ao Arbaeen em Karbala.

O Arbaeen marca o 40º dia após a Ashura, o rito xiita em homenagem ao martírio de Hussein Ibn Ali, neto do Profeta Maomé, que foi brutalmente assassinado junto com toda a sua família pelo califa omíada Yazid Ibn Muawiya. Para os muçulmanos xiitas, esse massacre desonroso representa a personificação definitiva da injustiça e da traição, consideradas males fundamentais pela seita religiosa.

É tudo sobre Resistência – sem mencionar explicitamente o Eixo de Resistência. O martírio do Imã Hussein na Batalha de Karbala foi – em Bagdá hoje – diretamente ligado ao genocídio israelense em curso de dezenas de milhares de palestinos, em uma “Karbala do século XXI”.

Vinte e um milhões de peregrinos a pé

Voar logo antes do pôr do sol em um helicóptero soviético de uma base militar às margens do rio Tigre, em Bagdá, para uma minibase em Karbala, a cerca de 10 quilômetros do magnífico santuário de Hazrat Abbas, é uma experiência surpreendente.

O comandante irrepreensível Tahsin, em Karbala, ordenou que o piloto seguisse a rota de peregrinação de Arbaeen – um dos vários eixos que cruzam o Iraque e levam ao santuário.

A sensação é de uma longa tomada cinematográfica de viagem. Fileiras e mais fileiras de peregrinos, em sua maioria vestidos de preto, com suas mochilas, carregando faixas, caminhando em um ritmo constante, passando por uma coleção de barracas, locais de descanso e minirrestaurantes, misturando-se a voluntários que oferecem garrafas de água e bebidas gratuitas para matar a sede nessa jornada espiritual, porém árdua, durante o escaldante verão iraquiano.

À medida que nos aproximamos de Karbala, a multidão fica muito mais numerosa. É uma espécie de festa móvel do espírito comunitário. Surgem cantos espontâneos, pontuados por um ritmo contagiante e, acima de tudo, há uma vontade incansável de continuar caminhando, de tentar chegar o mais próximo possível do santuário.

Fomos informados de que está absolutamente fora de questão nos aproximarmos do santuário – a estrada está lotada, com corpos pressionados sobre corpos. Portanto, a próxima melhor opção está em algum lugar a cinco quilômetros de distância: uma espécie de mini-Palestina com uma exposição de feitos militares de Gaza, um espaço para palestras, uma mini-mesquita, uma pequena réplica de Al-Aqsa e até mesmo uma placa de trânsito: “Mesquita de Al-Aqsa, 833 km”.

Isso não poderia ser mais explícito: a conexão Karbala-Al-Aqsa, no coração de Arbaeen. É como se o espírito do Imam Hussein estivesse velando cada alma ao longo desses 833 quilômetros.

Esse complexo tem sido um dos pontos centrais da comemoração deste ano. O fluxo de peregrinos de todo o mundo muçulmano é incessante, e muitos param para prestar suas homenagens. Perto dali, o comandante Tahsin nos apresenta a um combatente anti-ISIS da província de Anbar, que agora supervisiona uma barraca de kebab iraquiana, preparando deliciosos pratos de graça, “no espírito do Imam Hussein”.

Voando de volta para Bagdá à noite, o piloto circula em torno das luzes deslumbrantes do Santuário Hazrat Abbas – um espetáculo digno de uma versão remixada das Mil e Uma Noites. Mais tarde, a gerência do santuário confirmaria que um número surpreendente de 21,4 milhões de peregrinos havia chegado a Karbala para o Arbaeen.

Reunião com al-Sudani

O primeiro-ministro Sudani recebe os convidados estrangeiros para uma reunião especial em um desses palácios monumentais da era Saddam, repletos de mármore, dentro da Zona Verde protegida de Bagdá.

Frio, calmo e controlado, ele fala com autoridade não apenas sobre a situação dos palestinos, mas sobre sua visão de uma nação estável, detalhando sua política “Iraque em Primeiro Lugar”. Trata-se de desenvolvimento sustentável; investimentos em educação e novas tecnologias; uma afirmação de soberania; e, na política externa, um ato de equilíbrio extremamente cuidadoso, fazendo malabarismos com os EUA, a UE, a Rússia, a China e os parceiros árabes/muçulmanos.

É feita uma sugestão para que o Iraque passe para o próximo nível e considere a possibilidade de se juntar ao BRICS. O PM Sudani faz as devidas anotações.

A mensagem é clara: o Iraque está finalmente no caminho da estabilidade e da normalidade. Anteriormente, um funcionário do governo havia observado: “O Daesh [ISIS] nos fez retroceder muitos anos. Caso contrário, teríamos progredido ainda mais”.

De acordo com o Dr. Hussein Allawi, um dos principais conselheiros do primeiro-ministro, o ISIS foi reduzido, na melhor das hipóteses, a algumas centenas de combatentes nas margens do deserto sírio-iraquiano, protegidos por tribos locais. A ameaça parece ter sido finalmente contida, apesar dos esforços dos EUA para exagerá-la.

Mas o que realmente empolga Allawi são as ramificações da política “Iraque em Primeiro Lugar” e uma série de possibilidades de investimento à frente. Na área de energia, por exemplo, a China compra quase metade da produção de petróleo do Iraque; é uma das principais operadoras em vários campos de petróleo; e até mesmo diversifica em projetos como o petroleo-para-escolas, ajudando Bagdá na área de educação.

O Iraque está na vanguarda da ambiciosa e multibilionária Iniciativa Belt and Road (BRI) da China na Ásia Ocidental. O foco principal é a Strategic Development Road (Estrada de Desenvolvimento Estratégico) de US$ 17 bilhões: um corredor de transporte de Basra até a Europa Ocidental, que deverá ser concluído até 2028 e, eventualmente, conectado à BRI – uma rota que, no final das contas, será muito mais barata e rápida do que a rota de Suez existente.

Uma visita à Mesquita Abu Hanifa marca a chegada da Nova Bagdá. Foi lá que teve início a primeira grande marcha sunita xiita contra a ocupação, em 2003, apenas nove dias após a queda da estátua de Saddam Hussein na Praça Tahrir, planejada pelos EUA. O minarete bombardeado foi reconstruído, a mesquita está agora em condições impecáveis e um anexo com preciosos objetos sufis foi patrocinado por uma fundação cultural turca.

O berço da civilização está renascendo lenta, mas seguramente.



Fonte: https://thecradle.co/articles-id/26627

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