Ramin Mazaheri – 28 de junho de 2024
Esta é a quinta parte de uma série de várias partes sobre o livro de política do momento, The Defeat of the West (A derrota do Ocidente), de Emmanuel Todd.
No Capítulo 1, “Russian Stability” (Estabilidade russa), Todd explicou por que a Rússia prosperou apesar da imposição ocidental de sanções no nível do Irã: essencialmente, afirma Todd, os analistas ocidentais não queriam admitir que todos os dados prontamente disponíveis sobre a economia, a sociedade e a liderança da Rússia eram tão bons quanto obviamente eram. Para seguir a linha real dos dados e conclusões apresentados por Todd, sugeri que o Capítulo 2 fosse renomeado de “The Ukrainian Enigma” (O enigma ucraniano) para o mais honesto “The Ukrainian Suicide” (O suicídio ucraniano), e o artigo que analisa esse excelente capítulo pode ser encontrado aqui. No
Capítulo 3, Todd voltou-se para a Europa Oriental e explicou com uma palavra a desconcertante e rápida mudança histórica de um bloco pró-socialista aliado a Moscou para um cidadão de segunda classe da sociedade ocidental, russofóbico e amante do liberalismo: “inautêntico”. O artigo que analisa esse capítulo pode ser encontrado aqui, e vale a pena lê-lo, pois acho que muitas vezes esquecemos que nenhuma outra região global passou por uma mudança tão contrarrevolucionária nos últimos 35 anos. No Capítulo 4, Todd perguntou “O que é o Ocidente?”, e observei como seu livro mudou do realismo para o moralismo: segundo Todd, o Ocidente não está apenas “instável”, mas também “doente”, e ele atribui a culpa ao declínio de seus clérigos e intelectuais – o colapso do protestantismo e a criação de uma minoria em massa de pessoas com formação universitária que acham que um diploma da Moneymaking U. [Universidade Caça-níqueis – nota do tradutor] faz deles brâmanes e qualquer outra pessoa um dalit. Todd teria feito melhor se não tivesse se limitado e intitulado seu quinto capítulo da seguinte forma: “O suicídio assistido da Europa”. Ou ele poderia ter usado minha nova expressão – o “EU-icide” – para descrever rapidamente o fracasso óbvio do projeto pan-europeu.
O capítulo 6 é intitulado “Na Grã-Bretanha: rumo a uma nação zero (Croule Britannia))”, e a ideia dominante é de uma nação em “desordem”. Embora o projeto pan-europeu tenha se agarrado desesperadamente à russofobia como uma desculpa unificadora e distrativa, como podemos explicar por que o Reino Unido se tornou a nação ocidental mais pró-guerra e antirrussa?
Todd começa com: “A belicosidade britânica é ao mesmo tempo triste e cômica”. Ele poderia ter acrescentado “previsível”.
No seu livro History of the Russian Revolution (História da Revolução Russa) Trotsky escreveu que, nos primeiros anos da Primeira Guerra Mundial, os russos fizeram a mesma reclamação/insulto sobre o Reino Unido que ouvimos hoje:
“A Inglaterra se aqueceu lentamente. Nas salas de visitas de Petrogrado e nos quartéis-generais no front, eles brincavam gentilmente: ‘A Inglaterra jurou lutar até a última gota de sangue… do soldado russo’. Essas piadas se infiltraram e chegaram às trincheiras. “Tudo para a guerra!”, diziam os ministros, deputados, generais e jornalistas. “Sim”, o soldado começou a pensar nas trincheiras, “eles estão todos prontos para lutar até a última gota… do meu sangue”. Em toda a guerra, o exército russo perdeu mais homens do que qualquer outro exército que já havia participado de uma guerra nacional – aproximadamente dois milhões e meio de mortos, ou 40% de todas as perdas da Entente.”
A Inglaterra agora jurou lutar contra a Rússia até a última gota de sangue do soldado ucraniano – como sua história violenta continua se repetindo! Trotsky observou como o recruta russo comum logo percebeu que não apenas a Inglaterra o estava usando, mas também a classe alta russa, e ele também nos lembra de como a Rússia contemporânea é realmente uma nação experiente em guerras. Ninguém nunca acusa a Rússia de lutar com os soldados de outras pessoas.
Todd observa como – com rara honestidade de inspiração esquerdista sobre sua própria nação – o buldogue britânico se tornou apenas um cão irritante: “Hoje, o exército britânico nem mesmo seria capaz, como o exército francês, de liderar operações na África e se tornar detestado por isso.” Absolutamente verdadeiro – o exército britânico não consegue nem encher um estádio de futebol, ou mesmo colocar uma brigada em campo, tendo menos de 76.000 soldados regulares.
Então, por que diabos é, como diz Todd: um inverso de 2003, quando os EUA e Dubya Bush levaram o Reino Unido e Blair à guerra? É bem conhecido o fato de que, em 2022, o ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, persuadiu Zelensky a não negociar um plano de paz quando este estava à vista. O Reino Unido tem sido repetidamente o primeiro a enviar material de guerra, que antes eram linhas vermelhas, inspirando assim seus aliados, como a França e os EUA, a fazer o mesmo.
Brexit: como pode ser um erro se o projeto pan-europeu fracassar?
Todd rejeita a teoria – que é boa, mas raramente discutida na mídia ocidental – de que o Reino Unido está tão hiperenvolvido como reação ao isolamento europeu que provocou com o Brexit. Essa é uma explicação cultural-psicológica, mas é fato que o Reino Unido continua sendo europeu, embora tenha enormes laços com potências não europeias, como os EUA, o Canadá e a Austrália. Acho que há muita verdade nisso – aplicável principalmente aos eleitores do Remain – mas ignora o ângulo de classe, bem como o amor britânico de longa data por fomentar guerras estrangeiras, que Trotsky observou há mais de um século.
Todd diz que precisa admitir que estava errado sobre o fato de o Brexit ser uma expressão de identidade nacional:
“O Brexit, na realidade, decorre de uma implosão da nação britânica”.
Antes de entrar na visão de Todd, mantenho minha análise de que o Brexit decorre principalmente do flagrante fracasso do projeto pan-europeu: O Reino Unido olhou para o outro lado do Canal da Mancha em 2016 e viu um projeto pan-europeu assolado por protestos causados por ignorar os votos democráticos, greves, medidas de austeridade, uma crise de dívida (ainda) não resolvida, o início de uma crise migratória em 2015 e a obtenção de vantagens. Separar o Brexit de anos de fracasso pan-europeu é simplesmente um historicismo ruim, porque faz do Reino Unido uma ilha completa – não pode ser tão isolado dos eventos do resto do mundo e dos eventos dos quais o Reino Unido fez parte.
“Concluímos em relação ao Brexit: definitivamente não foi o retorno da nação, mas o resultado de sua decomposição. Os idosos expressaram sua nostalgia, os eleitores da classe trabalhadora expressaram sua anomia, os oligarcas da imprensa uma preferência pela americanosfera.”
Ele desenvolveu esse ponto apontando a prevalência influente de australianos como Rupert Murdoch que – junto com americanos e canadenses – têm uma visão distintamente não-europeia da história.
Ele prossegue:
“Se em 2014 os ucranianos rejeitaram a Rússia (e assim neutralizaram os oligarcas aos quais estavam tão próximos), em 2016 a Inglaterra escolheu os Estados Unidos (e assim conservou os oligarcas aos quais estavam tão ligados). A Inglaterra estava apoiando a independência da Ucrânia no mesmo momento em que eles estavam perdendo a sua. Portanto, como podemos nos surpreender com o fato de seu apoio ser uma paródia, quando eles estão no meio do esquecimento do que realmente é a independência?”
Todd acrescenta o fato de que grande parte da Inglaterra perdeu sua religião, além de ter perdido sua identidade industrial, que foi substituída por uma terrível identidade do setor de serviços com vários empregos, que só inspira frustração, ressentimento e raiva.
Vamos fazer a grande pergunta, que Todd não faz: O Brexit foi um erro?
Bem, isso depende inteiramente do sucesso do projeto pan-europeu, não?
Se daqui a 10 anos não houver mais UE – ou uma UE que ainda é assolada por crises anuais – os britânicos devem ser considerados como tendo estado à frente da curva. Se, de alguma forma, o projeto pan-europeu reverter seu declínio econômico e suas tendências antidemocráticas, e a soberania britânica não conseguir prosperar, só então poderemos considerar o Brexit um fracasso. Em 2024, ambas as áreas estarão indo mal – isso não faz do Brexit um fracasso, é claro.
Voltando a Todd: ele está, portanto, continuando com a tese abrangente deste livro – que o Ocidente está cometendo suicídio. A Ucrânia, o projeto pan-europeu, o Reino Unido – e certamente ele acrescentará os EUA a isso – todos estão cometendo harakiri.
Deve-se observar que, na verdade, ninguém está atacando o Ocidente – nem os muçulmanos que lutam pela liberdade, nem as hordas de refugiados húngaros que, em sua maioria, buscam qualquer coisa além de meramente trabalhar com salários baixos, nem os colonizados revoltados, nem os pró-socialistas, ninguém.
O Ocidente está, de fato, fracassando desde a Grande Crise Financeira – inteiramente sob suas próprias luzes – e isso inclui o Reino Unido. É uma pena que Todd veja o Brexit como um caso puramente interno de colapso britânico e não esteja de forma alguma ligado ao fracasso óbvio do projeto pan-europeu.
É irônico que, desde o Brexit, o discurso da mídia sobre o fracasso do projeto pan-europeu tenha despencado, quando se poderia pensar que a votação bem-sucedida do Brexit teria tido o efeito inverso.
O Reino Unido está mudando de cor, com certeza, mas seu 1% não está mudando suas listras
Todd nos lembra que o Reino Unido foi originalmente “unido” em torno de uma religião comum – o protestantismo. No Capítulo 4, ele postulou que o protestantismo passou de uma religião “ativa” para uma religião “zumbi” e, depois, para um estado de religião “zero” e, portanto, a união britânica perdeu as amarras criadas por seu princípio fundador original.
Todd reafirma que foi o protestantismo – e não a Revolução Francesa – que criou o conceito de “nação”. (É claro que isso é impreciso: Os nativos americanos, que sempre se autodenominaram “nações” tribais, introduziram esse conceito aos colonizadores ingleses. Na mente ocidental, a transmissão intelectual e política com o hemisfério ocidental era totalmente unidirecional, supostamente, mas estou divagando…) O protestantismo rejeitou a ideia de um homem universal e igualitário inerente ao catolicismo, e ele lembra que Oliver Cromwell liderou a primeira verdadeira revolução inglesa. A Revolução Inglesa (1639-51) foi (Todd não enfatiza o suficiente) teocrática (“Cristo, não o homem, é o rei”), profundamente marcial (imperialista, um conceito que o não esquerdista Todd perpetuamente ignora) e que penetrou a nova igreja na vida cotidiana britânica muito mais do que o Vaticano jamais fez (lembro-me da citação de Milton por Trotsky: “New Presbyter is but Old Priest writ large” [“O Presbiteriano é tudo, menos o Velho Padre em tamanho maior” – nota do tradutor]) . Sendo um revolucionário armado de esquerda para sua época – como um antiabsolutista, antimonarquista e pró-parlamentarista – a era de Cromwell é sempre menosprezada na democracia liberal ocidental em favor da igualmente pró-protestante, mas totalmente pró-monarquia/elitismo/revolução gloriosa “globalista” de 1688, portanto, parabéns a Todd por não ignorar a importância da era de Cromwell.
Pulo para o penúltimo parágrafo desse capítulo, onde ele afirma sua tese com base histórica sobre o Reino Unido de forma mais clara:
“Se, nos países protestantes, as tendências nacionais e religiosas estão tão entrelaçadas, suspeita-se que o colapso final da religião pode envolver o colapso do sentimento nacional. O protestantismo-zero, em grande parte, ou pelo menos para uma nação inerte, define uma nação-zero”.
Um estudante universitário britânico moderno provavelmente afirmaria que tudo isso é história antiga e inútil porque o protestantismo não tem importância na Grã-Bretanha do século XXI. Todd responderia com: “E é por isso que a Grã-Bretanha é um conceito zumbi a caminho de estar totalmente morto”. De fato, a votação escocesa de 2014 para a independência da Grã-Bretanha fracassou por uma margem próxima de 55-45% – a morte da Grã-Bretanha é uma tendência histórica muito real.
Todd também admite que estava errado por acreditar na propaganda de que o Reino Unido era pragmático e razoável, mesmo depois de participar da falsa Segunda Guerra do Golfo, e mesmo depois de tantos anos sendo o maior idiota neoliberal da Europa. Ele dá crédito à ex-primeira-ministra Liz Truss, profundamente desacreditada, por tê-lo despertado para a realidade da incompetência britânica, mas também para o que eu chamaria de nova forma de elitismo embutida no “wokeismo”. (Esse conceito – e também a crítica a esse conceito – são ambos tão estúpidos que não valem meu tempo, exceto para dizer: não há marxismo no wokeismo, desculpem os conservadores, e que a política de identidades é um elemento básico do liberalismo).
Todd cita como lugares como o The Guardian ficaram entusiasmados com o fato de os quatro principais ministros de Truss serem todos não brancos, elevando a política de identidade acima da ideologia e da competência. Ele observa corretamente que tal coisa jamais poderia ocorrer na França (católica, igualitária, pós-1789), onde posso relatar que, com uma exceção (Rachida Dati, uma total traidora, que foi Ministra do Interior de Sarkozy por alguns anos), o número de muçulmanos franceses que foram nomeados até mesmo para serem meros ministros juniores pode ser contado em uma mão. A reclamação de Todd não é essencialmente racial: ele observa como todos esses não-brancos eram conservadores raivosos e iludidos a ponto de tentarem, de forma infame, aprovar cortes de impostos para os ricos, sem nenhum corte orçamentário correspondente. Essa estupidez fiscal provocou a queda da libra esterlina, a desconfiança total em Truss e sua renúncia apenas 50 dias depois de assumir o cargo.
A falta de esquerdismo de Todd o torna um pouco suspeito com essas queixas raciais, que variam de muito exageradas a justas. Um exemplo desse último caso é que, em 2019, a probabilidade de um inglês branco obter um diploma universitário era de 33%, em comparação com 49% para negros, 55% para subcontinentais/asiáticos e 72% para os de origem chinesa. Todd afirma que isso é prova de discriminação na educação, bem como de discriminação na esfera política, conforme evidenciado por Truss, mas é muito mais preciso dizer que é apenas mais uma prova do suicídio ocidental: ignorar o bem-estar das massas.
Todd termina essa seção com perguntas mais questionáveis:
“Podemos simultaneamente nos alegrar com o fato de o racismo britânico ter desaparecido (como o racismo alemão) e nos perguntar qual é o objeto histórico chamado Reino Unido agora que ele não é governado exclusivamente por protestantes brancos? Eu faria a mesma pergunta aos Estados Unidos”.
Os conservadores se alegram com essas perguntas, mas essa não é uma pergunta muito conclusiva – então a cor e a religião dos governantes importam, Todd, ou a ideologia e a competência dos governantes?
Lembre-se de que, apesar de suas lamentações sobre o declínio do protestantismo, Todd nunca propõe que o Ocidente realmente promulgue leis que promovam mais protestantismo na governança ou na política. As soluções de Cromwell ou Khomeini não são encontradas em nenhum lugar da ideologia de Todd, portanto, suas reclamações parecem um tanto superficiais e falsas.
No entanto, sua lista de provas precisas do colapso, da incompetência e da imoralidade do Reino Unido é enorme:
Uma explosão de furtos em lojas, um plano vergonhoso para deportar requerentes de asilo para Ruanda, o tratamento dado a Julian Assange (que, segundo Todd, confirmou oficialmente o status do Reino Unido como um mero satélite dos EUA – embora esta semana Assange tenha sido chocante e gloriosamente libertado), salários bloqueados em meio a uma inflação recorde, pensões reduzidas, crianças tão subnutridas que despencaram no ranking global de tamanho infantil, fantasias sangrentas de vitória na Ucrânia:
“Acima de tudo, podemos sentir uma moralidade zero à qual poderíamos atribuir a entrega de urânio empobrecido à Ucrânia.”
Como observei, o livro de Todd passou do realismo político ao moralismo no Capítulo 4: Todd realmente acredita que a falta de religiosidade – ou seja, os valores protestantes – é um grande problema para o Ocidente. A tese de Todd é que a morte do protestantismo provocou a derrota do Ocidente, mas como ele não é um fundamentalista religioso que acha que as soluções podem ser encontradas voltando ao Livro Sagrado, ele é forçado a adotar uma visão essencialmente socialista de que o liberalismo (ou “neoliberalismo”, como ele insiste) promove a imoralidade de muitas maneiras diferentes.
Democracia liberal ocidental imoral, antiprotestante e totalmente elitista
Perder o protestantismo é ruim, mas a verdadeira causa do fim da Grã-Bretanha é como eles acrescentaram a imoralidade do liberalismo:
“Acima de tudo, e simplesmente por causa de seu pequeno tamanho e poder fraco, o neoliberalismo a colocou em uma situação muito mais perigosa; ele não tem os recursos nem a profundidade estratégica de um país-continente.”
Essas duas primeiras descrições são indubitavelmente verdadeiras – apenas uma cidade com mais de 5 milhões de habitantes; a Inglaterra tem a mesma área de superfície que apenas a bacia de Paris; eles dependem essencialmente dos EUA para sua capacidade nuclear; com o esgotamento iminente das reservas de petróleo do Mar do Norte, eles não têm recursos naturais importantes. Agora, acrescente o fato de que eles tolamente desindustrializaram e hiperfinanceirizaram sua economia mais do que qualquer outra nação ocidental, com a privatização excedendo qualquer outra nação da Europa.
Todd cita a famosa afirmação de Margaret Thatcher: “Não existe essa coisa de sociedade”. Certamente, se isso não for uma evidência da nação de “moralidade zero” de Todd, então não sei o que é, e Todd acabará dizendo o mesmo.
(O que Thatcher estava dizendo, no contexto, é que o governo não deveria existir. Essa é a própria essência do “neoliberalismo”, que busca (eu lembro constantemente) reverter as meras conquistas da social-democracia (não é o mesmo que democracia socialista) obtidas no Ocidente por meio do derramamento de sangue do proletariado e dos camponeses na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Thatcher estava dizendo claramente que o governo só atrapalha os indivíduos e as famílias – que devem se sustentar inteiramente por conta própria e não precisam de programas sociais.
O liberalismo sempre esteve intimamente ligado à visão ocidental do monarquismo/absolutismo/direito divino de que a elite não deve nada ao seu povo. É claro que isso não é uma defesa deles, mas os monarcas muçulmanos não desconsideram totalmente o senso de responsabilidade e caridade, pois eles são parte integrante da ideologia islâmica).
O problema é obviamente o liberalismo: econômica, democrática e culturalmente, ele destruiu a Britânia mais do que a mudança de um estado “zumbi” (que Todd definiu como envolvimento religioso apenas nos atos de nascimento, casamento e morte) para um estado de protestantismo “zero”.
É claro que, para um não socialista como Todd, essas conclusões claras devem ser evitadas!
“Mas imputar a responsabilidade ao neoliberalismo seria insuficiente.” É assim que ele começa uma seção intitulada “Por trás da desintegração econômica, a desintegração religiosa”. Em seguida, ele racionaliza: “Os primeiros liberais, como foi bem demonstrado por Karl Polanyi, construíram o mercado; os neoliberais destroem a economia. É muito diferente”.
Não, não é.
Naturalmente, o liberalismo tinha necessidades e objetivos diferentes há 300 anos, mas a ideia de que uma “mão invisível”, e não as necessidades das massas, deveria controlar as políticas públicas é apenas uma de uma longa lista de princípios liberalistas que se baseiam na exploração competitiva de muitos para os privilégios/elitismo de poucos.
É claro que, em refutação a Polanyi, qualquer esquerdista pode facilmente observar que os liberais de 300 anos atrás não conseguiriam construir “o mercado” sem os lucros distorcidos de guerras imperialistas, salários roubados de escravos, genocídios em massa de nativos americanos, ditaduras fantoches etc. e etc.
Todd continua: “Voltamos, mais uma vez, à teoria de que os atores são sinceros”. Todd está se referindo à sua recente percepção, que discuti anteriormente, de que os “idiotas ocidentais” são sinceros em sua idiotice ocidental… como se isso importasse! Todd continua com mais uma racionalização de que o problema é o “neoliberalismo” e não o “liberalismo” (bocejo… os antissocialistas sempre acusam os erros dos socialistas, mas inocentam incessantemente os crimes dos liberalistas). O que Todd não consegue ver é que a classe da elite é totalmente sincera em seus interesses próprios e em sua cupidez – é exatamente contra isso que o socialismo legisla, felizmente.
Todd está afirmando, como muitos fazem – de bitcoiners antiestatais a libertários e apologistas do capitalismo de todos os tipos – que o neoliberalismo é drasticamente diferente do liberalismo.
“A revolução conceitual neoliberal, portanto, parece ser a simples liberação de um instinto de aquisição que está dissociado de toda moralidade. A palavra que me vem à mente é ‘ganância’.”
Aparentemente, Todd nunca leu Zola, que há 150 anos descreveu a ganância incrivelmente desumana dentro da França. Ou estudou um fenômeno histórico do qual eu o acusei repetidamente de ter quase uma aparente ignorância – o imperialismo: ele sabe o que os belgas fizeram no Congo por dinheiro? Ele leu The Jungle sobre os frigoríficos de Chicago no início do século XX? Meu Deus, essa lista pode continuar infinitamente! “A ganância é boa” foi uma frase do filme de Oliver Stone em 1987, mas Wall Street foi inventada décadas antes, e a promoção da ganância no capitalismo-imperialismo remonta a centenas de anos antes disso. Todd escreve como se a ganância fosse algo novo?!
Essas pessoas tolas – e eu sempre tento evitar insultos pessoais, mas aqui não consigo – que insistem que o “neoliberalismo” é diferente do “liberalismo” são atores sinceros… como se isso importasse! O que importa em nosso estudo de ciência política é que o socialismo é a única ideologia que provou ser capaz de reduzir drasticamente (não exterminar) o impacto da ganância humana.
Todd não se aprofunda explicitamente na agora em voga vanglória dos primeiros heróis liberais de Smith e Ricardo (embora ele critique o neoliberalismo por querer um “capitalismo não weberiano”, ou seja, um capitalismo despojado da ética de trabalho protestante), nem pede abertamente um retorno às políticas daquela suposta era de ouro – o que eu chamo de “salafismo liberal” -, mas sua tentativa de fazer uma distinção entre o liberalismo pré-1980 e pós-1980 só convencerá os capitalistas comprometidos (iludidos).
O suicídio é motivado apenas pelo niilismo? Independentemente disso, o Ocidente não está cometendo suicídio, mas homicídio
No entanto, Todd insiste que não vai parar na mera ganância – ele continua com sua tese abrangente de que o que está arruinando o Ocidente é o niilismo, e ele diz que o espírito do niilismo é abundante no neoliberalismo.
Ele compartilha sua análise da citação surpreendente de Thatcher:
“É difícil para mim ver Margaret Thatcher como uma importante filósofa política do final do século XX. No entanto, essa frase, tão extraordinária em seu radicalismo, nos revela uma verdade oculta do neoliberalismo: uma negação pura e simples da realidade. A menos que ela tenha um desejo: a destruição daquilo que negamos que exista, a sociedade.”
A diferença entre a Thatcher de extrema direita e o centrista Todd é que Todd aceita que o governo simplesmente precisa existir. O que Todd não percebe é que muitos ocidentais querem que o governo acabe totalmente, e isso não é novo, nem é niilismo, mas uma ideologia política ocidental de longa data, da qual há muitas provas:
Os monarquistas queriam que o governo paresse de interferir no governo do rei; os proprietários de escravos do século XIX queriam que o governo não interferisse na maneira como eles administram suas plantações; os industriais de frigoríficos de Chicago do século XX não queriam que o governo interferisse em suas más condições de trabalho e nos salários dos imigrantes eslavos; o candidato presidencial do Partido Libertário Americano para 2024 quer abolir o ministério da educação porque o Libertarianismo não quer que o governo interfira no direito alienável e dado por Deus aos americanos de serem estúpidos.
Destruir o governo não é niilismo – é uma escolha política, que foi completamente acomodada durante a mudança ocidental do monarquismo para o liberalismo, precisamente porque o liberalismo se baseia no fato de que a elite não paga sua parte justa nem devolve sua quantidade enorme de poder político.
Sim, mas estou descrevendo apenas o neoliberalismo – o antigo liberalismo, que era o que havia de bom!!!
Essa é essencialmente a alegação totalmente absurda daqueles que tentam separar os dois, que claramente não devem ser separados; a alegação daqueles que se recusam a aceitar que o socialismo é a ruptura necessária para as sociedades modernas.
Todd não consegue progredir em sua ciência política, então ele tenta progredir em sua insatisfatória explicação sociopsicológica do niilismo, como ele continua:
“Não é nos antigos debates de economistas, como aqueles entre Milton Friedman e seus oponentes keynesianos, que encontraremos as causas desse niilismo, do desaparecimento da moralidade social, mas se uma sociedade tem um estado de religião ativo, zumbi ou nulo. É hora de aplicar à Grã-Bretanha a hipótese do colapso final e do desaparecimento do protestantismo. O vazio religioso é a verdade suprema do neoliberalismo.”
Sim, mas isso é apenas neoliberalismo – o antigo liberalismo tinha aquela religião dos velhos tempos!
Eles tinham moralidade… se esquecermos os genocídios, as fomes orquestradas, a escravidão, os trabalhadores oprimidos, a ausência de votos para aqueles que não possuem terras e para mulheres, etc. e etc. E também devemos esquecer que o secularismo – a rejeição explícita da moralidade religiosa na política governamental – é uma parte vital do liberalismo (na verdade, para muitos na França de hoje, é a parte mais importante do liberalismo)!
De qualquer forma, The Defeat of the West (A derrota do Ocidente) é o livro político ocidental que mais causou impacto em 2024 e é certamente uma obra de moralismo político. Isso diz muitas coisas, e uma delas é: o Ocidente percebe que tem um problema com a moralidade. É um bom livro e um progresso, mesmo que o argumento para o progresso final – precisamos de democracia socialista e não de democracia liberal – não seja apresentado.
Uma nação perdida e ateísta se volta para a Rússia… por raiva
Não foi isso que os EUA já fizeram? A oligarquia Clintoniana no poder – ainda no poder com Biden – convenceu com sucesso seus apoiadores do Partido Democrata de que eles perderam em 2016 por causa da interferência russa e não por sua própria corrupção, incompetência, imoralidade, ideologia liberal terrível, impopularidade etc.
Nesse sentido, eu diria que a russofobia do Reino Unido também é outra expressão de como o buldogue britânico se tornou um cãozinho americano. O Reino Unido não está apenas obedecendo – alguns anos depois – às ordens russofóbicas da oligarquia norte-americana?
O que é certo para Todd é que o Reino Unido está totalmente à deriva:
“Nada do que foi dito anteriormente descreve uma nação segura de si mesma ou de seu destino. Tudo, ao contrário, revela uma perda de sentido, uma ansiedade que, podemos imaginar, começa a precisar de bodes expiatórios. O proletariado e os idosos tinham a Europa. Mas os partidários do Remain (Fique) – quem eles têm?
A Rússia foi, de certa forma, designada como o bode expiatório à disposição da classe média britânica, com seus filhos de oligarcas colocados em massa em escolas particulares inglesas e, acima de tudo, com seus investimentos imobiliários em Londres, diretamente ou sob a cobertura de empresas britânicas fictícias. A compra do clube de futebol Chelsea por Roman Abramovich simbolizou, quase que por si só, o novo status da Grã-Bretanha como uma nação inerte, desligada ou prostituída.”
Assim, enquanto a oligarquia governante dos EUA teve que inventar um falso esquema de interferência russa para explicar a chegada do (relativamente) anti-oligárquico Trump, Todd afirma que a influência russa no Reino Unido é muito mais popular.
O problema é que o liberalismo sempre se vende a quem paga mais, e uma Rússia que ressurgiu das cinzas da década de 1990 comprou a Grã-Bretanha da mesma forma que o Japão na década de 1980 comprou os EUA – e provocou uma grande reação, segundo Todd.
Entretanto, para mim, a frase-chave é: “os partidários do Remain – quem eles têm?” Assim como o Partido Democrata se tornou o partido pró-guerra e pró-imperialista nos EUA, os Remainers representam o mesmo segmento hipócrita, intolerante, protestante caduco e pró-capitalista da sociedade do Reino Unido. Os Remainers estão irritados com a saída da UE e estão transformando um conflito de 10 anos no Donbass em algo que não é: uma questão a ser resolvida pelo projeto pan-europeu.
Todd conclui este capítulo voltando a Cromwell, seu New Modern Army e o vibrante protestantismo descrito no poema Jerusalem, de William Blake:
Não deixarei de fazer o Luta Mental,
Nem minha espada dormirá em minha mão:
Até que tenhamos construído Jerusalém
Na terra verde e agradável da Inglaterra
Todd usa esse poema como uma forma de descrever sua visão idealizada do Reino Unido, a visão do Paraíso Perdido – a “propaganda de que o Reino Unido era pragmático e razoável” (para citar a mim mesmo). É uma visão do Reino Unido como um adversário digno dos franceses; a visão do Reino Unido como um campeão e conquistador verdadeiramente merecedor. Isso também mostra como o fanatismo religioso do protestantismo é uma grande motivação não declarada entre os ocidentais.
Como o fanatismo protestante segregacionista e elitista não é mais uma opção, a Inglaterra moderna faria bem em aceitar o conservadorismo trabalhador não abraâmico encontrado no confucionismo, que também incentiva a luta mental incessante. É uma pena que, em vez disso, o Reino Unido prefira a guerra com a China – depois da guerra com a Rússia, é claro.
Um breve resumo sobre a Escandinávia
Eu poderia terminar este artigo aqui, mas Todd diz que os mesmos problemas também existem em seu tema do Capítulo 7, intitulado: “Escandinávia: feminismo e beligerância”, portanto, faz sentido incluir sua análise aqui, juntamente com a do Reino Unido.
Ele começa observando as semelhanças entre as duas regiões: “Uma das surpresas da guerra da Ucrânia foi o surgimento de um polo protestante beligerante no norte da Europa”. Assim, vemos os vínculos culturais e históricos entre o Reino Unido e seus irmãos escandinavos, que se tornaram ainda mais fortes com o surgimento da ideologia germano-americana do racismo, do arianismo e da reescrita da história europeia que ocorreu na segunda metade do século XIX.
Alguns pontos ilustrativos:
- Todd escreve que, quando a Suécia abandona sua lucrativa neutralidade histórica para se juntar à OTAN por medo de que a Rússia a ataque, a análise apropriada é a “ilusão” (se preferirmos ignorar a análise de classe, como Todd sempre faz).
- Como ficou provado com sua ajuda na espionagem dos EUA sobre Angela Merkel, a Dinamarca é um membro de fato do clube anglófono Five Eyes. Isso se encaixa na observação anterior de Todd de que a Noruega também é totalmente aliada dos EUA, a ponto de esses dois países serem os culpados lógicos por trás da destruição do Nord Stream 2. A Escandinávia é essencialmente anglófona/na esfera americana, para usar a frase de Todd, e não está mais ligada aos mundos germânico ou eslavo.
- O regime de Truss mostrou uma falsa vitória esquerdista da política de identidade por meio da etnia. A recente ascensão da Escandinávia como a região mais feminista do mundo é outro exemplo de uma vitória da falsa esquerda na política de identidade – via gênero – porque foi combinada com um aumento concomitante da russofobia e uma explosão de beligerância marcial. “Estamos diante de uma contradição. Vamos tentar resolvê-la, ou pelo menos uma hipótese. Será que o feminismo, nesse caso, longe de incentivar o pacifismo, na verdade promove o belicismo?” O problema é que o feminismo no liberalismo está repleto de elitismo, segregação e adoção nas mulheres da masculinidade tóxica de seus homens, enquanto o feminismo no socialismo promove a igualdade, o respeito às diferenças e o respeito tanto à masculinidade, quanto à feminilidade.
Parafraseando Todd: Fim do protestantismo = crise nacional, religiosa e cultural. Portanto, a análise de Todd sobre a Escandinávia, os anglos e os escoceses é a mesma.
Para a minúscula Escandinávia, o status zero do protestantismo provocou uma “ansiedade de origem nacional”, o que explica a corrida para a OTAN, apesar de ninguém nunca ter querido se dar ao trabalho de invadir essa região isolada perto do Polo Norte.
Assim, Todd termina este capítulo explicando a histeria russofóbica da Escandinávia com: “é uma necessidade crua de pertencer”.
Mas não se trata de uma necessidade de pertencer: é a compulsão do Ocidente de que você deve ser como eles. Em nenhum outro lugar essa necessidade é mais forte do que nos Estados Unidos, o tema final do Ocidente já derrotado de Todd.
Ramin Mazaheri é o principal correspondente da PressTV em Paris e vive na França desde 2009. Foi repórter de um jornal diário nos EUA e fez reportagens no Irã, em Cuba, no Egito, no México, na Coreia do Sul, na Suíça, na Tunísia e em outros lugares. Seu último livro é France’s Yellow Vests: France’s Yellow Vests: Western Repression of the West’s Best Values”. Ele também é autor de “Socialism’s Ignored Success: Iranian Islamic Socialism”, bem como “I’ll Ruin Everything You Are: Ending Western Propaganda on Red China“, que também está disponível em chinês simplificado e tradicional. Qualquer repostagem ou republicação de qualquer um desses artigos é aprovada e apreciada. Ele usa o Twitter em @RaminMazaheri2 e escreve em substack.com/@raminmazaheri
Fonte: https://raminmazaheri.substack.com/p/emmanuel-todd-on-the-uks-russophobia
Esta é uma série fantástica de textos de Ramin dissecando Todd. Como é improvável que tal livro chegue por aqui e tal debate acontecer em nossas “esquerdas”, agradeço por mim e por todos os leitores a tradução dos mesmos.