Arnaud Bertrand (tradução) – 28 de outubro 2023
Trechos da entrevista com o ex-primeiro-ministro da França Dominique De Villepin traduzidos por Arnaud Bertrand:
Entrevista absolutamente magistral sobre Gaza de Dominique De Villepin, ex-primeiro-ministro da França, que liderou a oposição da França à guerra do Iraque e que, IMHO, é o melhor diplomata que o Ocidente produziu em décadas.
https://twitter.com/RnaudBertrand/status/1718201487132885246
Entrevista completa: https://www.youtube.com/watch?v=Mpq5IxdDeqA
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O Hamas preparou-nos uma armadilha, e esta armadilha é do máximo horror, da máxima crueldade. E portanto há o risco de uma escalada do militarismo, de mais intervenções militares, como se pudéssemos resolver com exércitos um problema tão grave como a questão palestina.
Há também uma segunda grande armadilha, que é a do ocidentalismo. Encontramo-nos presos, juntamente com Israel, neste bloco ocidental que hoje está a sendo desafiado pela maior parte da comunidade internacional.
[Apresentadora: O que é ocidentalismo?]
O ocidentalismo é a ideia de que o Ocidente, que durante 5 séculos geriu os assuntos mundiais, será capaz de continuar a fazê-lo silenciosamente. E podemos ver claramente, mesmo nos debates da classe política francesa, que existe a ideia de que, face ao que está atualmente acontecendo no Médio Oriente, devemos continuar ainda mais a luta, em direção ao que poderá assemelhar-se a uma guerra religiosa ou civilizacional. Ou seja, isolar-nos ainda mais no cenário internacional.
Este não é o caminho, especialmente porque existe uma terceira armadilha, que é a do moralismo. E aqui temos de certa forma a prova, através do que está acontecendo na Ucrânia e do que está acontecendo no Médio Oriente, deste duplo padrão que é denunciado em todo o mundo, inclusive nas últimas semanas quando viajei à África, ao Médio Oriente , ou à América Latina. As críticas são sempre as mesmas: vejam como as populações civis são tratadas em Gaza, [vocês] denunciam o que aconteceu na Ucrânia e são muito tímidos face à tragédia que se desenrola em Gaza.
Consideremos o direito internacional, a segunda crítica feita pelo Sul Global. Sancionamos a Rússia quando ela ataca a Ucrânia, sancionamos a Rússia quando ela não respeita as resoluções das Nações Unidas, e já faz 70 anos que as resoluções das Nações Unidas foram votadas em vão e que Israel não as respeita.
[Apresentadora: Você acredita que os ocidentais são na verdade culpados de arrogância?]
Os ocidentais devem abrir os olhos para a extensão do drama histórico que se desenrola diante de nós para encontrar as respostas certas.
[Apresentadora: Qual é o drama histórico? Quer dizer, estamos falando principalmente da tragédia de 7 de outubro, certo?]
É claro que estes horrores estão acontecendo, mas a forma de lhes responder é crucial. Vamos matar o futuro encontrando as respostas erradas…
[Apresentadora: Matar o futuro?]
Matar o futuro, sim! Por que?
[Apresentadora: Mas quem está matando quem?]
Você está em um jogo de causas e efeitos. [Quando somos] Confrontados com uma tragédia da história, não se pode utilizar esta matriz analítica de “cadeia de causalidade”, simplesmente porque, se o fizermos, não conseguiremos escapar dela. Quando compreendermos que existe uma armadilha, quando compreendermos que por detrás desta armadilha também houve uma mudança no Médio Oriente no que diz respeito à questão palestina… A situação hoje é profundamente diferente [da que era no passado]. A causa palestina foi uma causa política e secular. Hoje estamos confrontados com uma causa islâmica, liderada pelo Hamas. Obviamente, este tipo de causa é absoluta e não permite qualquer forma de negociação. Do lado israelense, também houve um desenvolvimento. O sionismo era secular e político, defendido por Theodor Herzl no final do século XIX. Tornou-se em grande parte messiânico e bíblico hoje. Isto significa que eles também não querem fazer concessões, e tudo o que o governo israelita de extrema-direita faz, continuando a encorajar a colonização, obviamente piora as coisas, inclusive desde 7 de Outubro. Portanto, neste contexto, entenda que já estamos nesta região enfrentando um problema que parece profundamente insolúvel.
Somado a isso está o endurecimento dos estados. Diplomaticamente, vejam as declarações do Rei da Jordânia, não são as mesmas de há seis meses. Vejam as declarações de Erdogan na Turquia.
[Apresentadora: Precisamente, estas são declarações extremamente duras…]
Extremamente preocupante. Por que? Porque se a causa palestina, a questão palestina, não tivesse sido trazida à tona, não tivesse sido posta em cena [durante algum tempo], e se a maioria dos jovens de hoje na Europa muitas vezes nunca sequer ouviram falar dela, ela continua a ser para os povos árabes a mãe de todas as batalhas. Todos os progressos alcançados na tentativa de estabilizar o Médio Oriente, onde se poderia acreditar…
[Apresentadora: Sim, mas de quem é a culpa? Tenho dificuldade em acompanhar você, é culpa do Hamas?]
Mas dona Malherbe, tenho formação diplomática. A questão da culpa será abordada por historiadores e filósofos.
[Apresentadora: Mas não dá para ficar neutro, é difícil, é complicado, não é?]
Não sou neutro, estou em ação. Estou simplesmente lhe dizendo que a cada dia que passa, podemos garantir que esse ciclo horrível pare… por isso falo em armadilha e por isso é tão importante saber que resposta vamos dar. Estamos sozinhos diante da história hoje. E não tratamos este novo mundo da forma como o devíamos fazer na verdade, sabendo que hoje já não estamos numa posição de força, não somos capazes de gerir sozinhos, como os policiais do mundo.
[Apresentadora: Então, o que devemos fazer?]
Exatamente, o que devemos fazer? É aqui que é essencial não isolar ninguém na cena internacional.
[Apresentadora: Incluindo os russos?]
Todos.
[Apresentadora: Todo mundo? Deveríamos pedir ajuda aos russos?]
Não estou dizendo que devemos pedir ajuda aos russos. O que estou dizendo é o seguinte: se os russos puderem contribuir acalmando algumas facções nesta região, então será um passo na direção certa.
[Apresentadora: Como podemos responder proporcionalmente à barbárie? Não é mais exército contra exército.]
Mas ouça, Appolline de Malherbe, as populações civis que morrem em Gaza, não existem? Então, porque o horror foi cometido de um lado, o horror deve ser cometido do outro?
[Apresentadora: Precisamos realmente igualar os dois?]
Não, é você quem está fazendo isso. Não estou dizendo que igualo as falhas. Procuro levar em conta o que pensa grande parte da humanidade. Há certamente um objetivo realista a perseguir, que é erradicar os líderes do Hamas que cometeram este horror. E não confundir os palestinos com o Hamas, esse é um objetivo realista.
A segunda coisa é uma resposta direcionada. Vamos definir objetivos políticos realistas. E a terceira coisa é uma resposta combinada. Porque não há uso eficaz da força sem uma estratégia política. Não estamos em 1973 nem em 1967. Há coisas que nenhum exército no mundo sabe fazer, que é vencer uma batalha assimétrica contra os terroristas. A guerra contra o terrorismo nunca foi vencida em lugar nenhum. E, em vez disso, desencadeia crimes, ciclos e escaladas extremamente dramáticos. Se a América perdeu no Afeganistão, se a América perdeu no Iraque, se perdemos no Sahel, é porque é uma batalha que não pode ser vencida simplesmente, não é como se tivéssemos um martelo que bate num prego e o problema está resolvido. Portanto, precisamos de mobilizar a comunidade internacional, sair desta armadilha ocidental em que nos encontramos.
[Apresentadora: Mas quando Emmanuel Macron fala sobre uma coalizão internacional…]
Sim, e qual foi a resposta?
[Apresentadora: Nenhum.]
Exatamente. Precisamos de uma perspectiva política, e isto é um desafio porque a solução de dois Estados foi removida do programa político e diplomático israelita. Israel precisa de compreender que para um país com um território de 20.000 quilômetros quadrados, uma população de 9 milhões de habitantes, enfrentar 1,5 bilhões de pessoas… Os povos nunca esqueceram que a causa palestina e a injustiça feita aos palestinos é uma fonte significativa de mobilização. Devemos considerar esta situação, e acredito que é essencial ajudar Israel, orientar… alguns dizem impor, mas acho melhor convencer, avançar nesta direção. O desafio é que hoje não há interlocutor, nem do lado israelita nem do lado palestiniano. Precisamos trazer interlocutores.
[Apresentadora: Não cabe a nós escolher quem serão os líderes da Palestina.]
A política israelita nos últimos anos não quis necessariamente cultivar uma liderança palestina… Muitos estão na prisão, e o interesse de Israel – porque repito: não era do seu programa ou do interesse de Israel na altura, ou pelo menos assim pensavam – [o interesse] era, em vez disso, dividir os palestinos e garantir que a questão palestina desaparecesse. A questão palestina não desaparecerá. E então devemos abordar isso e encontrar uma resposta. É aqui que precisamos de coragem. O uso da força é um beco sem saída. A condenação moral do que o Hamas fez – e não há “mas” nas minhas palavras relativamente à condenação moral deste horror – não deve impedir-nos de avançar política e diplomaticamente de uma forma esclarecida. A lei da retaliação é um ciclo sem fim.
[Apresentadora: O “olho por olho, dente por dente”.]
Sim. É por isso que a resposta política deve ser defendida por nós. Israel tem direito à autodefesa, mas esse direito não pode ser uma vingança indiscriminada. E não pode haver responsabilização coletiva do povo palestino pelas ações de uma minoria terrorista do Hamas.
Quando você entra nesse ciclo de encontrar falhas, as memórias de um lado entram em conflito com as do outro. Alguns irão justapor as memórias de Israel com as memórias da Nakba, a catástrofe de 1948, que é um desastre que os palestinos ainda vivenciam todos os dias. Então você não pode quebrar esses ciclos. Devemos ter força, é claro, para compreender e denunciar o que aconteceu e, desse ponto de vista, não há dúvidas sobre a nossa posição. Mas também é preciso ter coragem, e diplomacia é isso… diplomacia é poder acreditar que há luz no fim do túnel. E essa é a astúcia da história; quando você está no fundo do poço, pode acontecer algo que lhe dê esperança. Depois da guerra de 1973, quem poderia imaginar que antes do final da década o Egipto assinaria um tratado de paz com Israel?
O debate não deveria ser sobre retórica ou escolha de palavras. O debate hoje é sobre ação; devemos agir. E quando você pensa em ação, existem duas opções. Ou é guerra, guerra, guerra. Ou trata-se de tentar avançar em direção à paz, e repito: é do interesse de Israel. É do interesse de Israel!”
— fim da entrevista —
Fontes:
* https://twitter.com/RnaudBertrand/status/1718201487132885246
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