A questão de Kherson

Nora Hoppe – 15 de novembro de 2022

Recuar ou não recuar…

Prefácio: Não faço ideia de guerra… nunca experimentei uma. Não entendo nada de campanhas militares, estratégias, manobras, armas, etc. Só vi vários filmes de guerra, li romances de guerra e acompanhei as notícias de várias guerras…

* * *

Ouvi dizer que cada guerra é diferente, e que as comparações só servem para “certos aspectos”.

Acompanho regularmente as notícias sobre a Operação Militar Especial da Rússia na Ucrânia. E recentemente li e ouvi muitas opiniões divergentes e divisionistas sobre a retirada das tropas russas de Kherson, uma cidade que agora é legalmente parte da Rússia.

Dispensando as opiniões do lado pró-OTAN, que não me interessam, observo a divisão de pensamento entre analistas, jornalistas e comentadores em fóruns de apoiadores dos russos: Há quem se indigna e vê a saída de Kherson como “uma desgraça”, “um sinal de fraqueza”, “um embaraço”, “uma estratégia ruim”, “óptica pouco atraente”, etc. Outros vêem isso como o resultado de uma decisão difícil, mas sábia – que foi tomada principalmente para salvar a vida de soldados russos, que teriam sido isolados por uma grande inundação se a OTAN explodisse a barragem de Kakhovka. (Pode haver razões táticas adicionais para a retirada, mas elas (ainda) não são conhecidas do público.)

Quando as pessoas falam de “a ótica não parece boa”… um set de filmagem vem imediatamente à minha mente (eu trabalhei no mundo do cinema por muitos anos). E isso imediatamente me diz como algumas pessoas veem essa operação – como espectadores: tem que ter um bom roteiro cativante, suspense, ação ininterrupta e – Deus me livre – nada de calmaria! Tem que, em última análise, fornecer uma liberação de dopamina. Tem que ter uma “Dirty Harry Catharsis”[Dirty Harry, conhecido no Brasil como Perseguidor Implacável, é um filme norte-americano de 1971 dirigido por Don Siegel, e estrelado por Clint Eastwood, no papel do inspetor de polícia Harry Callahan – nota do tradutor].

Isso me lembra reações semelhantes à troca de prisioneiros em meados de setembro, na qual alguns viam como um sinal de fraqueza até mesmo pensar em libertar prisioneiros de Azov… ou quando o governo chinês não deu uma resposta dramática quando Pelosi foi fazer seu número de sátira em Taiwan.

O que está na base desses tipos de reações? Por que tanta impaciência? Por que tanta preocupação com as “aparências”? Por que tal necessidade de saciar o próprio senso pessoal de justiça e retribuição? Tem algo a ver com o consumo? Especialmente no mundo ocidental, tornou-se um consumidor viciado não apenas de coisas, mas de “experiências” que podem ser vividas indiretamente.

Hoje assistimos a eventos de guerras e batalhas de outros povos em telas de computador do conforto de nossas casas ou em nossos minúsculos telefones sentados em cafés chiques… esses eventos podem ser acessados ​​a qualquer momento – basta pressionar uma tecla… e eles aparecem – como uma cena em um filme, um jogo, um concurso, ou uma partida esportiva. Mesmo os cadáveres que jazem mutilados, ensanguentados ou em tocos sangrentos espalhados sobre a lama tornam-se os pedaços de marionetes quebradas em um palco. “Inferno, a gente se acostuma…” A sacralidade da Vida se foi.

Nós nos tornamos espectadores… e nosso mundo se tornou um espetáculo. […e o discurso é a categoria cognitiva primária, em vez dos fatos e da realidade – nota do tradutor]

Em sua obra filosófica e crítica da cultura de consumo contemporânea, “A Sociedade do Espetáculo”, Guy Debord descreve a sociedade moderna como aquela em que a vida social autêntica foi substituída por sua representação: “Tudo o que antes era vivido diretamente tornou-se mera representação. ” Ele argumenta que a história da vida social pode ser entendida como “o declínio do ‘ser’ em ‘ter’… e o ‘ter’ em meramente ‘aparecer’”. Essa condição é o “momento histórico em que a mercadoria completa sua colonização da vida social”. [a pós-modernidade, ou modernidade terminal – nota do tradutor]

Não quero me desviar para o mundo do cinema ou para um discurso filosófico aqui… mas quero apenas fazer a pergunta: quando vamos acordar para o mundo real e autêntico?

Quando vamos parar de se preocupar com “aparências bacanas”, “manobras sensacionais” e “refutações rápidas”… e começar a lembrar do que se trata essa operação?

Não é essencialmente sobre VIDAS? Não apenas sobre as vidas daqueles que sofrem injustiças e atrocidades em Donetsk e Lugansk (e em outros lugares) desde 2014 (pelo menos)… mas também as vidas daqueles que lutam pela salvação e sobrevivência dessas outras vidas… e – por extensão – a vida de seres humanos soberanos no planeta que desejam viver em um mundo melhor e multipolar?

O presidente Vladimir V. Putin tentou evitar uma resposta militar na Ucrânia por muitos longos anos até que o povo russo e a Rússia começaram a ser confrontados com sua devastação externa, especialmente com a ameaça crescente da OTAN e o cultivo aprimorado de um regime neonazista na Ucrânia. Não é uma decisão fácil tomar medidas militares arriscadas para enfrentar um confronto inevitável. No seu discurso no Dia da Unidade Nacional diante dos historiadores e representantes das religiões tradicionais da Rússia, em 4 de novembro, ele expressou visivelmente seu horror e dor pessoal pela profunda tragédia desse confronto e pelo que estava acontecendo com o povo ucraniano:

“A situação na Ucrânia foi impulsionada por seus chamados ‘amigos’ ao ponto de se tornar mortal para a Rússia e suicida para o próprio povo ucraniano. E vemos isso mesmo na natureza das hostilidades, o que está acontecendo lá é simplesmente chocante. É como se o povo ucraniano não existisse. Eles são jogados na fornalha e pronto.”

Talvez a retirada “transitória” de Kherson não seja um retrocesso e possa até ser vista como uma vitória, outro tipo de vitória – uma vitória moral.

Em sua poderosa obra-prima, “Guerra e Paz”, Lev Nikolaevich Tolstoy retrata a Batalha de Borodino como o maior exemplo de patriotismo russo… perdas e a necessidade sacrificial de evacuar Moscou e queimar seus recursos – a fim de salvar o exército e a Rússia, os russos, alcançaram uma vitória moral nesta batalha… que acabou levando à vitória abrangente do exército russo e de toda a campanha.

“Várias dezenas de milhares de mortos jaziam em diversas posturas e vários uniformes nos campos e prados pertencentes à família Davýdov e aos servos da coroa – aqueles campos e prados onde por centenas de anos os camponeses de Borodino, Górki, Shevárdino e Semënovsk haviam ceifado suas colheitas e pastoreado seu gado. Nas estações de tratamento, a grama e a terra estavam encharcadas de sangue por um espaço de cerca de três acres ao redor. Multidões de homens de vários regimentos, feridos e ilesos, com rostos assustados, arrastavam-se de volta a Mozháysk de um exército e de volta a Valúevo do outro. Outras multidões, exaustas e famintas, avançavam lideradas por seus oficiais. Outros se mantiveram firmes e continuaram a atirar.”[“Guerra e Paz” – livro 10; capítulo 39]

O lema do general-em-chefe Mikhail I. Kutuzov de “paciência e tempo” permitiu que o exército russo fosse vitorioso quando ele foi capaz de abraçar, em vez de tentar conhecer, as contingências da guerra e preparar seus soldados da melhor maneira possível para tal batalha. Ele sabia que, travando a batalha campal e adotando a estratégia de guerra de atrito, ele agora poderia recuar com o exército russo ainda intacto, liderar sua recuperação e forçar as forças francesas enfraquecidas a se afastarem ainda mais de suas bases de abastecimento.

“Por longos anos de experiência militar ele sabia, e com a sabedoria da idade entendia, que é impossível para um homem dirigir centenas de milhares de outros lutando contra a morte, e ele sabia que o resultado de uma batalha não é decidido pelas ordens de um comandante-em-chefe, nem o lugar onde as tropas estão estacionadas, nem pelo número de canhões ou de homens mortos, mas pela força intangível chamada ‘espírito do exército’, e ele vigiava essa força e a guiava até onde estava em seu poder.”[“Guerra e Paz” – livro 10; capítulo 35… roteiro em negrito meu]

De acordo com Tolstoy: “Nos assuntos militares, a força de um exército é o produto de sua massa por algum ‘x’ desconhecido. … Essa incógnita é o espírito do exército, ou seja, a maior ou menor prontidão para lutar e enfrentar o perigo sentida por todos os homens que compõem um exército, independentemente de estarem ou não lutando sob o comando de um gênio, em formação de duas ou três linhas, com porretes ou com rifles que se repetem trinta vezes por minuto. Os homens que querem lutar sempre se colocarão nas condições mais vantajosas para lutar. … O espírito de um exército é o fator, que multiplicado pela massa dá a força resultante. Definir e expressar o significado desse fator desconhecido – o espírito de um exército – é um problema para a ciência”. [“Guerra e Paz” – livro 14; Capítulo 2]

Essa abordagem russa da guerra abriu uma opção inteiramente nova: que “o destino das nações” dependesse “não de conquistadores, nem mesmo de exércitos e batalhas, mas de outra coisa”. Esse “algo mais”, explica Tolstoi, foi de fato o espírito do povo e do exército, que os fez queimar suas terras em vez de entregá-las aos franceses.

As maiores qualidades de um ser humano, segundo Tolstoi, são: simplicidade, bondade e verdade. A moral, segundo o escritor, é a capacidade de sentir o “eu” como parte do “nós” universal. E os heróis de Tolstoi são simples e naturais, bondosos e afetuosos, honestos perante as pessoas e perante a sua consciência.

Tolstoi observa que, qualquer que seja a fé, ela “dá à existência finita do homem um sentido infinito, um sentido não destrutível por sofrimentos, privações ou morte”. … “Compreendi que a fé é um conhecimento do sentido da vida humana em consequência do qual o homem não se destrói a si mesmo, mas vive. A fé é a força da vida. Se um homem vive, ele acredita em alguma coisa. Se ele não acreditasse que se deve viver por alguma coisa, ele não viveria. Se ele não vê e reconhece a natureza ilusória do finito, ele acredita no finito; se ele entende a natureza ilusória do finito, ele deve acreditar no infinito. Sem fé ele não pode viver… Para que o homem possa viver, ele deve ou não ver o infinito, ou ter uma explicação do significado da vida que conecte o finito com o infinito.”

“Compreendi que, se desejo compreender a vida e seu sentido, não devo viver a vida de um parasita, mas sim viver uma vida real, e – tomando o sentido dado a viver pela humanidade real e fundindo-me nessa vida – verifique isto.”

Para alcançarmos uma verdadeira vitória – por um mundo melhor… talvez precisemos recalibrar nosso pensamento e valores. Esta é realmente uma luta espiritual… não apenas sendo travada em Donetsk, Lugansk e Ucrânia. É uma luta agora dentro de nós mesmos – quaisquer que sejam as crenças de alguém… O que tem significado para nós? Talvez seja necessário que cada um de nós primeiro defina o que consideramos “sagrado” em nossas próprias vidas.

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Algumas referências:

http://kremlin.ru/catalog/keywords/78/events/69781

https://www.marxists.org/archive/tolstoy/1869/war-and-peace/index.html

https://thestrip.ru/en/smoky-eyes/kakim-bylo-otnoshenie-tolstogo-k-voine-prichiny-obyasneniya-voiny-po/

https://hum11c.omeka.fas.harvard.edu/exhibits/show/reading-history/differing-perspectitives-on–re


Fonte: https://thesaker.is/the-kherson-question/

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