Pepe Escobar- 16 de setembro de 2022 -[Postado originalmente no The Cradle e amplamente compartilhado. Traduzido e postado aqui com a permissão do autor]
Em meio a sérios tremores no mundo da geopolítica, é tão apropriado que a cúpula dos Chefes de Estado da Organização de Cooperação de Xangai (SCO) deste ano tinha quer acontecer em Samarcanda – o último cruzamento da Rota da Seda por 2.500 anos.
Quando em 329 AC, Alexandre, o Grande chegou à então cidade sogdiana de Marakanda, parte do império Aquemênida, ele ficou atônito: “Tudo o que eu ouvi sobre Samarcanda é verdade, exceto que é ainda mais bonito do que eu tinha imaginado”.
Saltando rapidamente para a peça de opinião do presidente do Uzbequistão, Shavkat Mirziyoyev, publicado antes da cúpula da SCO, onde ele enfatiza como Samarcanda agora “pode se tornar uma plataforma capaz de unir e reconciliar os estados com várias prioridades da política externa”.
Afinal, historicamente, o mundo do ponto de vista do marco da Rota da Seda sempre foi “percebido como um e indivisível, não dividido”. Esta é a essência de um fenômeno único – o “Espírito Samarcanda”.
E aqui Mirziyoyev liga o “Espírito Samarcanda” ao original “Espírito Xangai” da SCO, estabelecido no início de 2001, alguns meses antes dos eventos de 11 de setembro, quando o mundo foi forçado a se envolver em brigas e guerras sem fim, quase da noite para o dia.
Todos estes anos, a cultura da SCO tem evoluído de uma forma chinesa distinta. Inicialmente, os Cinco de Xangai estavam focados no combate ao terrorismo – meses antes da guerra de terror dos EUA (itálico meu) se espalhasse do Afeganistão para o Iraque e mais além.
Ao longo dos anos, os “três sem” iniciais – sem aliança, sem confronto, sem mira em terceiros – acabaram equipando um veículo rápido e híbrido cujas “quatro rodas” são “política, segurança, economia e humanidades”, completas com uma Iniciativa de Desenvolvimento Global, todas elas contrastando fortemente com as prioridades de um ocidente hegemonista e confrontativo.
O maior destaque da cúpula da Samarcanda desta semana é que o presidente chinês Xi Jinping apresentou a China e a Rússia, juntas, como “potências globais responsáveis” empenhadas em garantir a emergência da multipolaridade, e recusando a “ordem” arbitrária imposta pelos Estados Unidos e sua visão unipolar do mundo.
O Ministro das Relações Exteriores russo Sergey Lavrov resumiu a conversa bilateral de Xi com o Presidente Vladimir Putin como “excelente”. Xi Jinping, antes de sua reunião, e dirigindo-se diretamente a Putin, já havia enfatizado os objetivos comuns Rússia-China:
“Diante das mudanças colossais, em escala global, do nosso tempo, sem precedentes na história, estamos prontos com nossos colegas russos para dar o exemplo de uma potência mundial responsável e desempenhar um papel de liderança para colocar um mundo em tão rápida mudança na trajetória de desenvolvimento sustentável e positivo”.
Mais tarde, no preâmbulo da reunião dos chefes de estado, Xi foi direto ao ponto: é importante “evitar tentativas de forças externas de organizar ‘revoluções coloridas’ nos países da SCO”. Bem, a Europa não seria capaz de dizer, porque ela tem sofrido revoluções coloridas continuamente desde 1945.
Putin, por sua vez, enviou uma mensagem que vai soar por todo o Sul Global: “Transformações fundamentais foram delineadas na política e economia mundial, e são irreversíveis“. (itálico meu)
Irã: é hora do show
O Irã foi a estrela convidada do show em Samarcanda, oficialmente abraçado como o 9º membro da SCO. O Presidente Ebrahim Raisi, enfatizou significativamente antes de encontrar Putin que “o Irã não reconhece sanções contra a Rússia”. A parceria estratégica deles será reforçada. No fronte dos negócios, uma forte delegação composta por líderes de 80 grandes empresas russas estará visitando Teerã na próxima semana.
A crescente interpolação Rússia-China-Irã – os três principais motores da integração Eurásia – assusta os suspeitos do costume, que podem estar começando a entender como a SCO representa, a longo prazo, um sério desafio ao seu jogo geoeconômico. Assim, como todo grão de areia no deserto da Heartland já está ciente, a pressão geopolítica contra o trio vai aumentar exponencialmente.
E depois houve o mega-crucial encontro trilateral em Samarcanda: Rússia-China-Mongólia. Não houve vazamentos oficiais, mas este trio discutiu, sem dúvida, o gasoduto Power of Siberia 2 – o interconector a ser construído através da Mongólia; e o papel reforçado da Mongólia em um corredor de conectividade crucial da Iniciativa de Cintrurão e Estrada [Belt and Road Initiative (BRI) – nota do tradutor], agora que a China não está usando a rota Trans-Siberiana para exportações para a Europa por causa de sanções.
Putin informou Xi sobre todos os aspectos da Operação Militar Especial da Rússia [Special military operation (SMO) – nota do tradutor] na Ucrânia e, sem dúvida, respondeu a algumas perguntas realmente difíceis, muitas delas circulando loucamente na rede chinesa por meses.
O que nos leva coletiva de imprensa de Putin no final da cúpula – com praticamente todas as perguntas girando previsivelmente em torno do teatro militar na Ucrânia.
A informação chave vinda do presidente russo: “Não há mudanças no plano do SMO. As principais tarefas estão sendo implementadas”. Sobre as perspectivas de paz, é a Ucrânia que “não está pronta para falar com a Rússia”. E em geral, “é lamentável que o Ocidente tenha tido a ideia de usar a Ucrânia para tentar derrubar a Rússia”.
Sobre a novela dos fertilizantes, Putin comentou, “fornecimento de alimentos, fornecimento de energia, eles (o oeste) criaram esses problemas, e agora estão tentando resolvê-los às custas de outra pessoa” – se referindo às nações mais pobres. “Os países europeus são antigas potências coloniais e eles ainda têm este paradigma da filosofia colonial”. Chegou a hora de mudar esse comportamento, de se tornarem mais civilizados”.
Sobre seu encontro com Xi Jinping: “Foi apenas uma reunião regular, já faz algum tempo que não tínhamos uma reunião cara a cara”. Eles falaram sobre como “expandir a rotatividade comercial” e contornar as “guerras comerciais causadas pelos nossos chamados parceiros”, com a “expansão dos arranjos em moedas nacionais não progredindo tão rápido quanto desejamos”.
Reforçando a multipolaridade
O encontro bilateral de Putin com o Primeiro Ministro indiano Narendra Modi não poderia ter sido mais cordial – com um registro de “amizade muito especial” – com Modi chamando por soluções sérias para as crises de alimentos e combustíveis, realmente abordando o Ocidente. Enquanto isso, o Banco Estatal da Índia vai abrir contas especiais em rupias para lidar com o comércio relacionado à Rússia.
Esta é a primeira viagem de Xi ao exterior desde a pandemia de Covid-19. Ele pôde fazer isso porque está totalmente confiante em ser premiado com um terceiro mandato durante o Congresso do Partido Comunista no próximo mês em Pequim. Xi agora controla e/ou tem aliados colocados em pelo menos 90 por cento do Politburo.
A outra razão séria foi para recarregar o apelo da BRI em estreita conexão com a SCO. O ambicioso projeto BRI da China foi oficialmente lançado por Xi em Astana (agora Nur-Sultan) há nove anos. Ele permanecerá como o conceito global da política externa chinesa por décadas.
A ênfase do BRI no comércio e na conectividade está ligada à evolução dos mecanismos de cooperação multilateral da SCO, congregando nações focadas no desenvolvimento econômico independente da “ordem baseada em regras” hegemonistas e nebulosas. Até mesmo a Índia sob Modi está tendo uma outra ideia sobre confiar nos blocos ocidentais, onde Nova Deli é na melhor das hipóteses um “parceiro” neo-colonizado.
Então Xi e Putin, em Samarcanda, para todos os fins práticos, delinearam um roteiro para fortalecer a multipolaridade – como enfatizado pela declaração final de Samarcanda assinada por todos os membros da SCO.
O quebra-cabeça cazaque
Haverá muitos solavancos na estrada. Não foi por acaso que Xi começou sua viagem no Cazaquistão – a retaguarda ocidental mega-estratégica da China, compartilhando uma fronteira muito longa com Xinjiang. A fronteira triangular no porto seco de Khorgos – para caminhões, ônibus e trens, separadamente – é algo muito importante, um nó absolutamente chave do BRI.
A administração do Presidente Kassym-Jomart Tokayev em Nur-Sultan (que em breve será renomeado Astana novamente) é bastante complicada, oscilando entre as orientações políticas orientais e ocidentais, e infiltrada pelos americanos tanto quanto durante a era do antecessor Nursultan Nazarbayev, o primeiro presidente pós-URSS do Cazaquistão.
No início deste mês, por exemplo, Nur-Sultan, em parceria com Ankara e British Petroleum (BP) – que praticamente governa o Azerbaijão – concordou em aumentar o volume de petróleo no oleoduto Baku-Tblisi-Ceyhan (BTC) para até 4 milhões de toneladas por mês até o final deste ano. Chevron e ExxonMobil, muito ativos no Cazaquistão, são parte do acordo.
A agenda declarada dos suspeitos habituais é “finalmente desconectar as economias dos países da Ásia Central da economia russa”. Como o Cazaquistão é membro não apenas da União Econômica da Eurásia (EAEU) liderada pela Rússia, mas também do BRI, é justo assumir que Xi – assim como Putin – discutiu algumas questões bastante sérias com Tokayev, disse a ele para entender de que forma o vento sopra e o aconselhou a manter a situação política interna sob controle (vide o golpe abortado em janeiro, quando Tokayev foi de fato salvo pela Organização do Tratado de Segurança Coletiva [CSTO] liderada pela Rússia).
Não há dúvida de que a Ásia Central, historicamente conhecida como uma “caixa de pedras preciosas” no centro do Heartland, passando pelas Antigas Estradas da Seda e abençoada com imensa riqueza natural – combustíveis fósseis, metais de terras raras, terras agrícolas férteis – será usada pelos suspeitos habituais como uma caixa de Pandora, liberando todo tipo de truques tóxicos contra a legítima integração eurasiática.
Isso está em nítido contraste com a Ásia Ocidental, onde o Irã na SCO irá turbinar seu papel-chave de conectividade entre a Eurásia e a África, em conexão com o BRI e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (INSTC).
Portanto, não é de se admirar que os EAU, Bahrein e Kuwait, todos na Ásia Ocidental, reconheçam para que lado o vento está soprando. Os três estados do Golfo Pérsico receberam o status oficial de “parceiro” da SCO em Samarcanda, ao lado das Maldivas e Myanmar.
Uma coesão de objetivos
Samarcanda também deu um impulso extra à integração ao longo da Parceria da Grande Eurásia – que inclui a União Econômica Eurásia (EAEU) – e isto, apenas duas semanas após o Fórum Econômico Oriental (EEF), realizado em Vladivostok, na costa estratégica da Rússia no Pacífico.
A prioridade de Moscou na EAEU é implementar um estado-sindical com Belarus (que parece se tornar um novo membro da SCO antes de 2024), lado a lado com uma integração mais estreita com o BRI. A Sérvia, Singapura e Irã também têm acordos comerciais com a EAEU.
A Parceria da Grande Eurásia foi proposta por Putin em 2015 – e está ficando mais afiada à medida que a comissão da EAEU, liderada por Sergey Glazyev, projeta ativamente um novo sistema financeiro, baseado em ouro e recursos naturais, contra-atacando o sistema de Bretton Woods. Uma vez que a nova estrutura esteja pronta para ser testada, o principal disseminador provavelmente será o SCO.
Portanto, aqui vemos em jogo a coesão total dos objetivos – e os mecanismos de interação – implementados pela Parceria da Grande Eurásia, BRI, EAEU, SCO, BRICS+ e o INSTC. É uma luta titânica para unir todas essas organizações e levar em conta as prioridades geoeconômicas de cada membro e parceiro associado, mas é exatamente isso que está acontecendo, a uma velocidade vertiginosa.
Nesta festa da conectividade, os imperativos práticos vão desde a luta contra gargalos locais até a criação de complexos corredores multiusuários – do Cáucaso à Ásia Central, do Irã à Índia, tudo discutido em múltiplas mesas redondas.
Os sucessos já são notáveis: da Rússia e Irã introduzindo acordos diretos em rublos e riais, à Rússia e China aumentando seu comércio de rublos e yuan para 20% – e crescendo. Uma Bolsa de Mercadorias do Leste poderá ser estabelecida em breve em Vladivostok para facilitar o comércio de futuros e derivativos com a Ásia-Pacífico.
A China é o credor/investidor principal indiscutível em infraestrutura em toda a Ásia Central. As prioridades de Pequim podem ser importar gás do Turcomenistão e Uzbequistão e petróleo do Cazaquistão, mas a conectividade não está muito distante.
A construção da ferrovia Paquistão-Afeganistão-Uzbequistão (Pakafuz) de US$ 5 bilhões, com 600 km de extensão, vai entregar carga da Ásia Central para o Oceano Índico em apenas três dias, ao invés de 30. E essa ferrovia estará ligada ao Cazaquistão e à já em andamento ferrovia de 4.380 km de comprimento construída na China, de Lanzhou a Tashkent, um projeto do BRI.
Nur-Sultan também está interessado em uma ferrovia Turcomenistão-Irã-Turquia, que ligaria seu porto de Aktau no Mar Cáspio com o Golfo Pérsico e o Mar Mediterrâneo.
Turquia, por sua vez, ainda é um observador da SCO e está constantemente fazendo suas apostas, lenta, mas seguramente tentando avançar estrategicamente sua própria Pax Turquica, do desenvolvimento tecnológico à cooperação em defesa, tudo isso sob uma espécie de pacote de segurança político-econômica. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan discutiu isso em Samarcanda com Putin, já que este último anunciou mais tarde que 25% do gás russo comprado por Ancara será pago em rublos.
Bem-vindo ao Great Game 2.0
A Rússia, ainda mais do que a China, sabe que os suspeitos do costume estão indo para à falência. Somente em 2022, houve um golpe abortado no Cazaquistão em janeiro; problemas em Badakhshan, no Tajiquistão, em maio; problemas em Karakalpakstan, no Uzbequistão, em junho; os contínuos confrontos na fronteira entre o Tajiquistão e o Quirguistão (ambos presidentes, em Samarcanda, pelo menos concordaram em um cessar-fogo e em retirar as tropas de suas fronteiras).
E depois há o Afeganistão recentemente liberado – com nada menos que 11 províncias cruzadas pelo ISIS-Khorasan e seus associados tajiques e uzbeques. Milhares de aspirantes a jihadis da Heartland fizeram a viagem a Idlib na Síria e depois voltaram ao Afeganistão – “encorajados” pelos suspeitos do costume, que usarão todos os truques sob o sol para assediar e “isolar” a Rússia da Ásia Central.
Portanto, a Rússia e a China devem estar prontas para se envolver num jogo imensamente complexo, o Great Game 2.0 em esteroides, com os EUA/NATO lutando unidos pela Eurásia e Turquia no meio.
Em uma nota mais brilhante, Samarcanda provou que existe pelo menos consenso entre todos os jogadores de diferentes organizações institucionais que: a soberania tecnológica irá determinar a soberania; e que a regionalização – neste caso, a Eurásia – está destinada a substituir a globalização governada pelos EUA.
Estes atores também entendem que a era Mackinder e Spykman está chegando ao fim – quando a Eurásia estava “contida” em uma forma semi-desmontada para que as potências marítimas ocidentais pudessem exercer total domínio, contrariando os interesses nacionais dos atores do Sul Global.
Agora joga-se a bola de forma completamente diferente. Tanto quanto a Parceria da Grande Eurásia é totalmente apoiada pela China, ambas favorecem a interconexão dos projetos BRI e EAEU, enquanto a SCO forma um ambiente comum.
Sim, este é o projeto civilizacional eurasiático para o século XXI e além. Sob a égide do “Espírito Samarcanda”.
Fontes:
https://thecradle.co/Article/Columns/15771
‘Samarkand Spirit’ to be driven by ‘responsible powers’ Russia and China
Acho que a expressão “belt and road” não está bem traduzida em lugar nenhum – aqui foi literalmente “cinturão e caminho”, ridículo.
Bora pensar e sugerir pra esse povo?
Minhas propostas:
1. cinturão de caminhos, mais literal
2. Cinturão logístico, mais tecnocrata
3. Laço de rotas, mais livre
Pepe, acompanhando com avidez os novos rumos de uma geopolítica multipolar! Obrigada
Olá Pepe serve este post para deixar claro que sempre que públicas algo aqui eu faço o favor de partilhar num grupo de Facebook. por isso te agradeço o profissionalismo e dedicação, como deves imaginar sou de Portugal e aqui as coisas começam a ficar para lá do péssimo. um abraço e vê se apareces no Youtube porque o pessoal tem saudades de te ouvir.
Parabéns pela excelência de seu trabalho, o conhecimento liberta!