Por trás da Cortina de Trapo: BRICS+ vs OTAN/G7


Pepe Escobar para o The Cradle e amplamente compartilhado – 28 de Junho de 2022 -[Traduzido por Vila Mandinga]

O Ocidente está obcecado, nostalgicamente preso a políticas ultrapassadas de ‘contenção’, dessa vez contra a integração do Sul Global. Infelizmente para o Ocidente, o resto do mundo segue adiante, todos juntos.

Era uma vez uma Cortina de Ferro que dividia o continente europeu. Cunhado pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill, o termo fazia referência aos esforços da então União Soviética para criar uma fronteira física e ideológica com o Ocidente. O Ocidente, por sua vez, seguiu política de contenção contra a disseminação e a influência do comunismo.

Avance a fita até a era contemporânea do tecnofeudalismo, e há hoje o que se deve chamar de Cortina de Lata, fabricada pelo Ocidente medroso, sem noção, coletivo, via G7 e OTAN: dessa vez, essencialmente para conter a integração do Sul Global.

BRICS contra G7

O exemplo mais recente e significativo dessa integração foi O surgimento do BRICS+ na cúpula online da semana passada organizada por Pequim. É evento que vai além de estabelecer os contornos de um ‘novo G8’, muito mais além, portanto, de ser mera alternativa ao G7.

Basta ver quem são os interlocutores dos cinco BRICS históricos (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul): há ali um microcosmo do Sul Global, englobando Sudeste Asiático, Ásia Central, Ásia Ocidental, África e América do Sul – juntando verdadeiramente o “Global” ao Sul Global.

De modo revelador, as mensagens claras do presidente russo Vladimir Putin durante a cúpula de Pequim, em nítido contraste com a propaganda do G7, foram na verdade dirigidas a todo o Sul Global:

– A Rússia cumprirá suas obrigações de fornecer energia e fertilizantes.

– A Rússia espera boa colheita de grãos – e fornecer até 50 milhões de toneladas aos mercados mundiais.

– A Rússia garantirá a passagem de navios graneleiros por águas internacionais, mesmo que Kiev tenha minado portos ucranianos.

– A situação negativa dos grãos ucranianos está sendo artificialmente inflada.

– O forte aumento da inflação em todo o mundo é resultado da irresponsabilidade dos países do G7, não da Operação Z na Ucrânia.

– O desequilíbrio das relações mundiais fermenta há muito tempo e tornou-se resultado inevitável da erosão do Direito internacional.

Um sistema alternativo

Putin também abordou diretamente um dos principais temas que os BRICS vêm discutindo em profundidade desde os anos 2000 – o desenho e a implementação de uma moeda internacional de reserva.

“O Sistema Russo de Mensagens Financeiras está aberto para conexão com bancos dos países do BRICS.”

“O sistema russo de pagamentos MIR está expandindo sua presença. Estamos explorando a possibilidade de criar uma moeda internacional de reserva, baseada na cesta de moedas do BRICS” – disse o presidente russo.

Esse movimento tornou-se inevitável depois das histéricas sanções ocidentais pós-Operação Z; da desdolarização total imposta a Moscou; e do aumento do comércio entre as nações BRICS. Por exemplo, até 2030, um quarto da demanda de petróleo do planeta virá da China e da Índia, sendo a Rússia o principal fornecedor.

Os países “RIC” dos BRICS não podem simplesmente expor-se ao risco de posto fora de um sistema financeiro dominado pelo G7. Até a Índia, que anda na corda bamba, já começa a entender.

Quem fala pela ‘comunidade internacional?’

No estágio atual, os BRICS representam 40% da população mundial, 25% da economia global, 18% do comércio mundial e contribuem com mais de 50% para o crescimento econômico mundial. Todos os indicadores estão subindo.

Sergey Storchak, presidente executivo do banco russo VEG, disse o mesmo, de forma bastante diplomática: “Se as vozes dos mercados emergentes não forem ouvidas nos próximos anos, precisamos pensar muito seriamente sobre criar um sistema regional paralelo, ou talvez um sistema global. ”

Um “sistema regional paralelo” já está sendo ativamente discutido entre a União Econômica Eurasiana (UEE, ing. EAEU) e a China, processo coordenado pelo Ministro da Integração e Macroeconomia Sergey Glazyev, que recentemente escreveu manifesto impressionante, de divulgação de suas ideias sobre a soberania econômica mundial.

Desenvolver o ‘mundo em desenvolvimento’

O que acontece na frente financeira transeurasiana seguirá em paralelo com uma estratégia de desenvolvimento chinesa até agora pouco conhecida: a Iniciativa de Desenvolvimento Global (IDG; ing Global Development Iniciative, IDG), anunciada pelo presidente Xi Jinping na Assembleia Geral da ONU, ano passado.

A IDG pode ser vista como mecanismo de apoio da estratégia abrangente – que continua a ser a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR), de corredores econômicos que interligam a Eurásia até sua península ocidental, a Europa.

No Diálogo de Alto Nível sobre Desenvolvimento Global, parte da cúpula do BRICS, o Sul Global conheceu um pouco mais sobre a IDG, criada em 2015.

Em poucas palavras, a IDG visa a turbinar a cooperação internacional para o desenvolvimento, complementando o financiamento de uma infinidade de órgãos, dentre os quais, por exemplo, o Fundo de Cooperação Sul-Sul, a Associação Internacional de Desenvolvimento (AID), o Fundo Asiático de Desenvolvimento (FAD) e o Fundo Mundial para o Meio Ambiente (FMMA).

As prioridades incluem “reduzir a pobreza; prover segurança alimentar; responder à COVID-19 e vacinas”; industrialização e infraestrutura digital. Posteriormente, um grupo de Amigos da IDG foi estabelecido no início de 2022, e já atraiu mais de 50 nações.

As iniciativas ICR e IDG devem avançar em conjunto, mesmo que o próprio Xi tenha deixado claro durante a cúpula do BRICS que “alguns países estão politizando e marginalizando a agenda de desenvolvimento, construindo muros e aplicando a outros, sanções incapacitantes”.

Por outro lado, o desenvolvimento sustentável não é exatamente a xícara de chá do G7, muito menos da OTAN.

Sete contra o mundo

O principal objetivo declarado da cúpula do G7 em Schloss Elmau, nos Alpes da Baviera, é “projetar unidade” – com os bastiões do oeste coletivo (incluindo o Japão) unidos em “apoio” sustentável e indefinido ao estado ucraniano irremediavelmente falido.

Isso faz parte da “luta contra o imperialismo de Putin”, mas também há “a luta contra a fome e a pobreza, a crise da saúde e as mudanças climáticas”, como disse o chanceler alemão Scholz ao Bundestag

Na Baviera, Scholz pressionou por um Plano Marshall para a Ucrânia – conceito ridículo, considerando-se que Kiev e seus arredores podem ser reduzidos a estado insignificante até o final de 2022.

A noção de que o G7 poderia trabalhar para “evitar fome catastrófica”, segundo Scholz, chega ao paroxismo do ridículo, pois a fome iminente é consequência direta da histeria das sanções impostas pelo G7.

O fato de Berlim ter convidado Índia, Indonésia, África do Sul e Senegal como complementos do G7 valeu como alívio cômico adicional.

Sobe a cortina de lata

Inútil esperar da espantosa coleção de mediocridades “unidas” na Baviera, sob o comando de facto da Fuehrer da Comissão Europeia (CE) Ursula von der Leyen, qualquer análise substanciosa do colapso das cadeias de suprimentos globais e razões que forçaram Moscou a reduzir os fluxos de gás para a Europa. Pois é. Culparam Putin e Xi.

Bem-vindos à Cortina de Lata – reinvenção à moda século 21, do Intermarium do Báltico ao Mar Negro, idealizado pelo Império das Mentiras, completado com a Ucrânia ocidental absorvida pela Polônia, os Três Anões do Báltico: Bulgária, Romênia, Eslovênia; República Tcheca e até mesmo Suécia e Finlândia, aspirantes à OTAN, todas protegidas da “ameaça russa”.

UE fora de controle

O papel da UE, dominando Alemanha, França e Itália dentro do G7, é particularmente instrutivo, especialmente agora que a Grã-Bretanha voltou ao status de estado insular inconsequente.

Todos os anos são emitidas cerca de 60 “diretivas” europeias. Devem ser obedientemente transpostas para o Direito interno de cada estado-membro da UE. Na maioria dos casos, faz-se a transposição sem discutir.

Depois, há mais de 10 mil ‘decisões’ europeias, nas quais ‘especialistas’ da Comissão Europeia (CE) em Bruxelas emitem ‘recomendações’ a todos os governos, saídas diretamente do cânone neoliberal, sobre despesas, receitas e ‘reformas’ (na Saúde, Educação, nas pensões) que devem ser obedecidas.

Implica dizer que eleições em cada nação-membro da UE são absolutamente sem sentido. Chefes de governos nacionais – Macron, Scholz, Draghi – são meros executores. Nenhum debate democrático é permitido: a ‘democracia’, assim como os ‘valores da UE’, não passam de cortinas de fumaça.

O verdadeiro governo é exercido por um bando de apparatchiks escolhidos em mútuas concessões que se fazem entre os poderes executivos, e age de forma supremamente opaca.

A CE está totalmente fora de qualquer controle. Assim aconteceu que alguém tão impressionantemente medíocre como Ursula von der Leyen – antes já declarada a pior Ministra da Defesa da Alemanha moderna – foi catapultada para o trono de atual Führer da CE, ditando a política externa, energética e até econômica da Europa.

Essa gente representa o quê?

Do ponto de vista do Ocidente, a Cortina de Lata, apesar de todos os sinistros sobretons de Guerra Fria 2.0, não passa de aperitivo, antes do prato principal: o confronto hardcore na Ásia-Pacífico – região rebatizada recentemente como “Indo-Pacífico” – cópia carbono da gangue da Ucrânia, pensada para conter as iniciativas ICR e IGD da China.

Como contragolpe, é esclarecedor observar como a chancelaria chinesa já passou a destacar com detalhes o contraste entre BRICS – e BRICS+ – e o combo imperial AUKUS/Quad/IPEF.

BRICS significa multilateralismo de fato; foco no desenvolvimento global; cooperação para a recuperação econômica; e melhorar a governança global.

E a gangue concebida pelos EUA, por outro lado, representa a mentalidade da Guerra Fria; explorar países em desenvolvimento; conspirar para conter a China; e uma política norte-americana de “EUA em primeiro lugar” que consagra a “ordem internacional monopolista baseada em um único estado manda nos demais” (“ordem baseada em ordens”).

Seria equivocado esperar que os luminares do G7 reunidos na Baviera entendessem o absurdo de impor um teto de preço às exportações russas de petróleo e gás, por exemplo. Se isso realmente acontecer, Moscou não terá problemas para cortar totalmente o fornecimento de energia ao G7. E se outras nações forem excluídas, o preço do petróleo e do gás que importam aumentaria drasticamente.

BRICS pavimenta o caminho adiante

Portanto, não é de admirar que o futuro seja ameaçador.


em entrevista impressionante à TV estatal da Bielorrússia,[1] o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, resumiu o modo como “o Ocidente teme a concorrência honesta”.

Daí o ápice da cultura do cancelamento e “supressão de tudo o que contradiz de alguma forma a visão e o arranjo neoliberal do mundo”. Lavrov também resumiu o roteiro à frente, para o benefício de todo o Sul Global:


“Não precisamos de um novo G8. Já temos estruturas (…) principalmente na Eurásia. A UEE está promovendo ativamente os processos de integração com a República Popular da China, alinhando a Iniciativa Cinturão e Rota, da China, com os planos de integração da Eurásia. Membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático estão analisando de perto esses planos. Alguns deles estão assinando acordos de zona de livre comércio com a UEE. A Organização de Cooperação de Xangai também faz parte desses processos (…) Há mais uma estrutura além das fronteiras geográficas da Eurásia.”

“São os BRICS. Essa associação depende cada vez menos do estilo ocidental de fazer negócios e das regras ocidentais para moeda internacional, instituições financeiras e comerciais. Eles preferem métodos mais justos, pelos quais nenhum processo depende do papel dominante do dólar ou de alguma outra moeda. O G20 representa plenamente o BRICS e mais cinco países que compartilham as posições do BRICS; o G7 e seus apoiadores estão do outro lado das barricadas.”

“Este é equilíbrio sério. O G20 pode deteriorar-se, se o Ocidente o usar para fomentar o confronto. As estruturas que mencionei (OCX, BRICS, ANSA, UEE e a Comunidade de Estados Independentes, CEI) dependem de consenso, respeito mútuo e equilíbrio de interesses, não de ‘ordens’ para que aceitem aceitar realidades mundiais unipolares.”


Cortina de lata? Parece mais uma Cortina de Trapo.


  1. Em VK, em excelente português!

Be First to Comment

Leave a Reply

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.