23/10/2020, Pepe Escobar, Asia Times (traduzido, com autorização do autor)
O planeta tem todos os motivos para se sentir mortalmente confuso, ante isso aí em que deram os tão belos ideais do Iluminismo que Thomas Jefferson incorporou na Declaração de Independência de 1776…Trump vs. Biden.
Jefferson tomou livremente empréstimos de Locke, Rousseau, Hume para afinal se sair com alguns Maiores Hits muitíssimo citáveis, verdades “autoevidentes”, tipo “todos os homens são criados iguais”, “direitos inalienáveis” e as tais ardentes “vida, liberdade e busca da felicidade”.
Bem, bem, para Baudrillard, nada além de mero simulacro, nesse exercício, porque na vida real nada dessa retórica de elevação aplicou-se jamais a norte-americanos nativos e africanos escravizados.
Ainda assim há algo de infinitamente fascinante nessas “verdades autoevidentes”. De fato, irradiaram-se como axiomas de Spinoza, jorrando verdades abstratas a serem extrapoladas à vontade. As “verdades autoevidentes” terminaram por criar toda a massiva estrutura do que definimos como “democracia liberal ocidental”.
Não surpreende pois que os EUA – autodefinidos perpetuamente “líderes do mundo livre” – considerem essas “verdades autoevidentes” como a base de uma sociedade ideal.
E é esse rio messiânico de ardente verdade que brota de um Himalaia de Moralidade que leva os norte-americanos a desprezar como “atores malignos” toda e qualquer nação ou sociedade declarada “desviante” em relação a evidências tão óbvias.
Malditos ‘estrangeiros’. Nunca aparecem para coisa que preste.
Corte rápido para um mini-remix do mais recente debate presidencial Trump-Biden. Em termos de política exterior, foi mais ou menos como segue.
A moderadora, desesperada para seguir adiante, porque bem sabe das limitações de tempo e dos entreveros que virão, incandescentes: “Agora quero passar para a Defesa. Já se sabe que Rússia e China estão interferindo em nosso processo eleitoral…”
Aí está: “verdade autoevidente” clássica, apresentada em estrita obediência aos manuais do Conselho de Relações Exteriores [ing. Council on Foreign Relations].
Corta para Biden: qualquer país que interfira nas eleições norte-americanas “pagará um preço”. A Rússia “está envolvida, a China está envolvida em alguma medida, e o Irã está envolvido.” Todo mundo aí interferindo na “soberania norte-americana”. Rudy Giuliani foi usado como “peão russo”. Trump “não quer” confrontar Putin. A Rússia “desestabilizou a OTAN” e “paga prêmio a quem matar norte-americanos no Afeganistão.” E China “tem de jogar conforme as regras, se não…”
Corta para Trump: “Você está querendo me dizer que o laptop dos infernos é mais um golpe russo? Tudo é Rússia, Rússia, Rússia?”
Para os arquivos perpétuos: Joe Biden, culpou, sim, a Rússia por tudo que foi encontrado no laptop dos infernos do filho Hunter.
E falando de Coreia do Norte, quando Trump disse que se entendeu bem com Kim Jong-Un, Biden ensinou: “Tínhamos boas relações com Hitler antes de ele invadir a Europa.” Por falar nisso: a Alemanha continua na Europa. Que coisa! Biden reconhecendo, em público o já sabido e provado apoio industrial e político dos EUA ao nazismo.
Malditos estrangeiros
Tudo isso posto, era inevitável que o laptop dos infernos aparecesse.
O FBI tem o laptop de Hunter Biden desde dezembro de 2019 –, primeira autoridade a requerer oficialmente a peça, por mandato judicial. Pois, mandato e tudo, o FBI sentou e permaneceu por 11 meses sentado em cima do laptop, sem fazer coisa alguma.
Assim aconteceu de os insuportáveis russos terem tido tempo de sobra para roubar o laptop e plantar neles provas incriminatórias.
OK, OK, não foi bem assim. O FBI estava ocupadíssimo tentando achar um meio para investigar “lavagem de dinheiro”. Lavagem de dinheiro, não pornografia infantil – a qual, segundo Giuliani, seria a piece de resistance no laptop. Ninguém sabe se prosseguem as tais supostas “investigações”.
Agora, o FBI e o Departamento de Justiça afinal “compareceram”: o laptop e os e-mails de Hunter Biden não foram parte de uma campanha russa de desinformação –, o que contradiz diretamente o que Joe Biden disse no debate.
Mas então, pouco antes do debate, uma bomba pela imprensa, incluindo o FBI e a Segurança Nacional – anunciou que os irritantes russos e iranianos, sim, estavam de fato “tentando influenciar a opinião” nas eleições dos EUA.
E as “verdades autoevidentes” voltaram, com alarido.
Essas coisas não se inventam. E fica ainda pior quando a tal “interferência nas eleições” pode estar vindo de dentro dos EUA, não de algum desses malditos estrangeiros.
No último verão, o Transition Integrity Project (TIP, port. “Projeto para a Integridade da Transição”) simulou vários cenários para o pós 3 de novembro. Todos os cenários simulados levaram a imensa crise constitucional – reforçada, como parte da premissa, pela recusa, por Trump, a aceitar a derrota nas pesquisas.
O TIP, como se podia prever, é mais uma das proverbiais bolhas geradas no território delimitado pela [estrada] Beltway, composta de Democratas sortidos de alto escalão, Clintonistas, Obamistas e neoconservadores da ala “Trump Nunca”.
O que dizem é agora amplamente aceito como outro avatar das tais “verdades autoevidentes”, por efeito do controle que esse grupo exerce sobre as empresas da grande mídia-empresa comercial norte-americana. Já se veem reverberações, por exemplo, aqui, aqui e aqui.
Assim, o cenário mais cotado para o apocalipse que há pela frente indica eleição não decidida, caos político e social disseminado, continuidade dos “protocolos de governo”, até lei marcial.
O que “vida, liberdade e busca da felicidade” teriam a ver com isso?*******
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